segunda-feira, 1 de abril de 2024

Bruno Carazza – Lula não mexe com o passado e nem com o futuro

Valor Econômico

Decisão de não condenar 60 anos do golpe esconde falta de disposição de atacar violência militar ou déficit da previdência das Forças Armadas

Não haveria tanto problema na decisão de Lula em não querer condenar os 60 anos do golpe militar se houvesse um comprometimento de seu governo com o futuro da relação do Estado com as Forças Armadas.

Ao longo da história, a influência dos militares sobre a política gerou uma série de benefícios e proteções que levaram parte da cúpula do Exército, da Marinha e da Aeronáutica a fecharem com o governo Bolsonaro e, posteriormente, a se apegarem à possibilidade de uma nova virada de mesa autoritária antes da posse de Lula e, uma semana depois, na invasão dos prédios da Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro.

Se Lula não está disposto a remexer as feridas do passado, tampouco se mostra empenhado com medidas saneadoras para enquadrar os militares num verdadeiro regime republicano. Oportunidades de ações não faltam.

No início do mês o ministro Carlos Augusto Amaral Oliveira, do Superior Tribunal Militar (STM), posicionou-se pela absolvição de oito militares que haviam sido condenados em primeira instância pelos assassinatos do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador de material reciclável Luciano de Macedo.

Na tarde do dia 8 de abril de 2019, um domingo, Evaldo seguia com a sua família para um chá de bebê quando seu automóvel foi alvejado por nada menos que 62 tiros de fuzil e pistola disparados por doze militares que faziam uma operação de patrulhamento do Exército na área da vila militar de Guadalupe, Zona Norte do Rio.

O músico morreu na hora e seu sogro, que estava no banco do passageiro, foi ferido, mas sobreviveu. O catador de latinhas Luciano, que passava pelo local e tentou ajudar, foi morto pelos 257 disparos feitos pelos militares.

Mesmo diante do excesso de evidências sobre a responsabilidade dos militares envolvidos numa ação desproporcional que resultou na morte de dois inocentes, o relator do processo no STM opinou pela absolvição dos réus por falta de provas. Não por acaso, o ministro Amaral Oliveira é egresso das Forças Armadas (tenente-brigadeiro da Aeronáutica).

A Justiça Militar é um órgão anacrônico do Poder Judiciário que não tem mais razão de existir - a não ser para garantir a impunidade de integrantes das Forças Armadas. O Brasil é um dos poucos países da América Latina a ter um foro exclusivo para os militares, com predominância de fardados no plenário de seu órgão máximo: dos 15 membros do STM, 10 são provenientes das Forças Armadas (4 do Exército, 3 da Marinha e 3 da Aeronáutica) e apenas 5 são civis.

Casos como o da provável absolvição dos militares que mataram Evaldo e Luciano (o julgamento foi suspenso após pedido de vistas da ministra Maria Elizabeth Rocha) estão se tornando cada vez mais comuns desde que a Lei Complementar 136/2010 conferiu à Justiça Militar a competência para julgar crimes cometidos durante operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Desde então, a certeza de ser julgado por seus pares tem servido de estímulo ao uso excessivo da violência militar em ações nas favelas e bairros pobres.

Além de corporativista, a Justiça Militar é cara. Em 2022 apenas o STM custou aos cofres públicos R$ 600 milhões, o que significa que cada processo em análise consome, ao ano, uma média de R$ 162,5 mil com a estrutura de pessoal, equipamentos, material de consumo e serviços terceirizados.

E já que estamos tratando de impactos fiscais, ainda está para surgir um presidente da República que tenha a coragem de atacar as imensas distorções presentes no regime previdenciário dos militares da União. O chamado Sistema de Proteção Social das Forças Armadas é fortemente subfinanciado por seus integrantes. De um total de R$ 56,8 bilhões de despesas com aposentadorias e pensões em 2022, apenas R$ 8,8 bilhões foram cobertos pelas contribuições pagas pelos militares da ativa, reservistas e pensionistas.

O rombo de quase R$ 48 bilhões gerado pela previdência dos militares representou, em 2022, 13% de todo o déficit previdenciário brasileiro, composto ainda pelo INSS e regime dos servidores públicos civis. A grande distorção, porém, reside no número de beneficiários dos sistemas: enquanto os aposentados e pensionistas do setor privado são 30,4 milhões (95,9% do total), a previdência dos militares beneficia apenas 166 mil militares da reserva e 353 mil pensionistas (1,6% do total).

Esse déficit de R$ 48 bilhões da previdência dos militares é coberto pelo pagamento de tributos cobrados de todos os brasileiros - razão pela qual seria fundamental incluir as Forças Armadas numa ampla reforma da previdência. Em 2019 até se cogitou algum aperto nas contas, com a elevação da idade mínima para a reforma e a elevação da alíquota de contribuição para o sistema. No entanto, Bolsonaro praticamente anulou os ganhos fiscais com a aprovação de um generoso pacote de benefícios para os militares da ativa (Lei 13.954/2019).

Lula justificou sua ordem expressa de cancelar atos que relembrem as vítimas do governo militar argumentando que não quer remoer o passado e que é preciso “tocar o país para a frente”.

Ao não querer se indispor com os militares em simples atos simbólicos, ele também deixa claro que não moverá uma palha para corrigir problemas que comprometem o nosso futuro, como o corporativismo judicial contra a violência militar ou o déficit crônico da previdência das Forças Armadas.

*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. 

 

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