Valor Econômico
Decisão de não condenar 60 anos do golpe esconde falta de disposição de atacar violência militar ou déficit da previdência das Forças Armadas
Não haveria tanto problema na decisão de Lula
em não querer condenar os 60 anos do golpe militar se houvesse um
comprometimento de seu governo com o futuro da relação do Estado com as Forças
Armadas.
Ao longo da história, a influência dos
militares sobre a política gerou uma série de benefícios e proteções que
levaram parte da cúpula do Exército, da Marinha e da Aeronáutica a fecharem com
o governo Bolsonaro e, posteriormente, a se apegarem à possibilidade de uma
nova virada de mesa autoritária antes da posse de Lula e, uma semana depois, na
invasão dos prédios da Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro.
Se Lula não está disposto a remexer as feridas do passado, tampouco se mostra empenhado com medidas saneadoras para enquadrar os militares num verdadeiro regime republicano. Oportunidades de ações não faltam.
No início do mês o ministro Carlos Augusto
Amaral Oliveira, do Superior Tribunal Militar (STM), posicionou-se pela
absolvição de oito militares que haviam sido condenados em primeira instância
pelos assassinatos do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador de material
reciclável Luciano de Macedo.
Na tarde do dia 8 de abril de 2019, um
domingo, Evaldo seguia com a sua família para um chá de bebê quando seu
automóvel foi alvejado por nada menos que 62 tiros de fuzil e pistola
disparados por doze militares que faziam uma operação de patrulhamento do
Exército na área da vila militar de Guadalupe, Zona Norte do Rio.
O músico morreu na hora e seu sogro, que
estava no banco do passageiro, foi ferido, mas sobreviveu. O catador de
latinhas Luciano, que passava pelo local e tentou ajudar, foi morto pelos 257
disparos feitos pelos militares.
Mesmo diante do excesso de evidências sobre a
responsabilidade dos militares envolvidos numa ação desproporcional que
resultou na morte de dois inocentes, o relator do processo no STM opinou pela
absolvição dos réus por falta de provas. Não por acaso, o ministro Amaral
Oliveira é egresso das Forças Armadas (tenente-brigadeiro da Aeronáutica).
A Justiça Militar é um órgão anacrônico do
Poder Judiciário que não tem mais razão de existir - a não ser para garantir a
impunidade de integrantes das Forças Armadas. O Brasil é um dos poucos países
da América Latina a ter um foro exclusivo para os militares, com predominância
de fardados no plenário de seu órgão máximo: dos 15 membros do STM, 10 são
provenientes das Forças Armadas (4 do Exército, 3 da Marinha e 3 da
Aeronáutica) e apenas 5 são civis.
Casos como o da provável absolvição dos
militares que mataram Evaldo e Luciano (o julgamento foi suspenso após pedido
de vistas da ministra Maria Elizabeth Rocha) estão se tornando cada vez mais
comuns desde que a Lei Complementar 136/2010 conferiu à Justiça Militar a
competência para julgar crimes cometidos durante operações de Garantia da Lei e
da Ordem (GLO). Desde então, a certeza de ser julgado por seus pares tem
servido de estímulo ao uso excessivo da violência militar em ações nas favelas
e bairros pobres.
Além de corporativista, a Justiça Militar é
cara. Em 2022 apenas o STM custou aos cofres públicos R$ 600 milhões, o que
significa que cada processo em análise consome, ao ano, uma média de R$ 162,5
mil com a estrutura de pessoal, equipamentos, material de consumo e serviços
terceirizados.
E já que estamos tratando de impactos
fiscais, ainda está para surgir um presidente da República que tenha a coragem
de atacar as imensas distorções presentes no regime previdenciário dos
militares da União. O chamado Sistema de Proteção Social das Forças Armadas é
fortemente subfinanciado por seus integrantes. De um total de R$ 56,8 bilhões
de despesas com aposentadorias e pensões em 2022, apenas R$ 8,8 bilhões foram
cobertos pelas contribuições pagas pelos militares da ativa, reservistas e
pensionistas.
O rombo de quase R$ 48 bilhões gerado pela
previdência dos militares representou, em 2022, 13% de todo o déficit
previdenciário brasileiro, composto ainda pelo INSS e regime dos servidores
públicos civis. A grande distorção, porém, reside no número de beneficiários
dos sistemas: enquanto os aposentados e pensionistas do setor privado são 30,4
milhões (95,9% do total), a previdência dos militares beneficia apenas 166 mil
militares da reserva e 353 mil pensionistas (1,6% do total).
Esse déficit de R$ 48 bilhões da previdência
dos militares é coberto pelo pagamento de tributos cobrados de todos os
brasileiros - razão pela qual seria fundamental incluir as Forças Armadas numa
ampla reforma da previdência. Em 2019 até se cogitou algum aperto nas contas,
com a elevação da idade mínima para a reforma e a elevação da alíquota de
contribuição para o sistema. No entanto, Bolsonaro praticamente anulou os
ganhos fiscais com a aprovação de um generoso pacote de benefícios para os
militares da ativa (Lei 13.954/2019).
Lula justificou sua ordem expressa de
cancelar atos que relembrem as vítimas do governo militar argumentando que não
quer remoer o passado e que é preciso “tocar o país para a frente”.
Ao não querer se indispor com os militares em
simples atos simbólicos, ele também deixa claro que não moverá uma palha para
corrigir problemas que comprometem o nosso futuro, como o corporativismo
judicial contra a violência militar ou o déficit crônico da previdência das
Forças Armadas.
*Bruno Carazza é professor associado da
Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do
sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
Exatamente!
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