Folha de S. Paulo
Seguiremos fingindo que os crimes digitais de
verdade não existem
O negócio mais lucrativo das plataformas de
redes sociais –como o X, de Elon Musk, e a Meta, de Mark Zuckerberg– é
impulsionar mensagens criminosas. Lá na Índia, são conclamações à violência
contra muçulmanos. Lá em Mianmar, uma campanha de limpeza étnica contra os
rohingya. A União Europeia regulamentou as redes. Nós, não. Para compensar, tal
qual uma república bananeira, convertemos Musk em vilão ou herói.
A Câmara paralisou o debate sobre a regulamentação. Os partidos e os nobres deputados beneficiam-se do faroeste virtual, investindo na calúnia envelopada em fake news. Havia um álibi: os regulamentadores anunciaram seu desejo de "banir a desinformação", uma senha quase explícita para a censura política. Nada feito. Vitória das bananas.
Do fracasso brotou o ridículo. Musk criticou
o STF, o que não é crime. Na sequência, provocou-o, ameaçando desbloquear
contas censuradas pelos juízes –sem, contudo, fazê-lo. Alexandre de Moraes
enxergou na mera ameaça um crime, adicionou o valentão ao plantel de
investigados no seu inquérito sem fim, enrolou-se no sagrado pendão auriverde e
correu para o abraço. Bananas.
Bolsonaro, sobre Musk: "A nossa
liberdade, em grande parte, está nas mãos deles. Não tem se intimidado. Tem
dito que vai botar para frente essa ideia de lutar por liberdade, por nosso
país." Lindo, não? A China tem Tesla e não tem X: o herói da extrema
direita opera como parceiro da ditadura de Xi Jinping. A liberdade –isso ele
mede na régua do vil metal.
A esquerda jamais proporciona à extrema
direita o monopólio do ridículo. Alexandre Padilha, voz do Planalto, acusou
Musk de promover uma "ofensiva truculenta" contra a nação orgulhosa
e, excitado, tomou de empréstimo as frases rituais de Maduro: "a nossa
soberania está sendo atacada e nós vamos responder com mais soberania".
Sério? Bastaria uma canetada do STF para bloquear o X no Brasil.
Liberdade de expressão não é um direito
absoluto. A lei brasileira impõe-lhe limites, a fim de incrustá-la na
arquitetura de um conjunto de direitos em perene tensão. Veta-se calúnia,
injúria e difamação. É proibido incitar à violência contra instituições, grupos
sociais ou indivíduos. São parâmetros que desagradam tanto à extrema direita
quanto à esquerda.
Médici, Pinochet, Bin Salman. André Mendonça,
ministro do Arbítrio de Bolsonaro, abriu investigações contra críticos de seu
mestre com base na Lei de Segurança Nacional. Liberdade de expressão, segundo
os extremistas de direita, é a liberdade das milícias digitais. Venezuela,
Cuba, a Rússia de Putin, a "democracia relativa" lulista. Liberdade
de expressão, segundo a esquerda fóssil, é a liberdade para eles mesmos –e a
censura para os que divergem. Daí, a cacofonia do debate em curso.
Alexandre de Moraes habituou-se à justiça de
exceção empregada nos anos em que Bolsonaro tramava o golpe de Estado.
Inspirado pelo conceito de "democracia militante", um contrabando
alemão de Gilmar Mendes, passou da punição legal do discurso criminoso ao
bloqueio de contas em redes sociais. O nome disso é censura prévia do discurso
futuro, algo vetado pela Constituição.
Embriagado pelo poder, o STF oferece-lhe
amparo –e ainda decide responsabilizar a imprensa profissional por declarações
de entrevistados. Bananas e bandeiras: a esquerda aplaude extasiada, sem atinar
para a hipótese de que, amanhã ou depois, o alvo seja ela. Na trajetória
insana, monta-se um palanque iluminado para as bazófias de Musk e circunda-se
um pistoleiro digital bolsonarista foragido com a auréola do martírio.
O teatro passa, o ruído cessa. Musk não será
punido por crimes que não cometeu. As plataformas de redes sociais continuarão
protegidas pelo manto da irresponsabilidade legal. Ao som do mar e à luz do céu
profundo, seguiremos fingindo que os crimes digitais de verdade não existem.
Farpas para todos,como se fosse simples assim.
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