Valor Econômico
Um caminho que tem forte efeito agregador e
transformador é apostar na construção de uma governança federativa com maior
amplitude, pactuação e efetividade
Diante dos novos desafios e oportunidades
trazidos pelo século XXI, o Brasil precisa atualizar seu projeto nacional.
Muitos pensam que essa é uma tarefa a ser realizada exclusivamente pelo
presidente eleito e seus auxiliares insulados nos ministérios em Brasília. Tal
modelo ainda imagina, idilicamente, um governante que tenha a seu lado “uma
elite ilustrada, que pense no país e no longo prazo e não sucumba aos
interesses mais imediatos”. Trata-se de uma concepção irrealista, pouco
democrática e incapaz de perceber a complexidade dos problemas e da produção
das soluções. Em lugar dessa visão, o melhor é pensar a nação por meio de uma
governança colaborativa.
Colaboração não significa a ausência de conflitos. Ao contrário, é privilegiar a construção de arenas de debate e decisão que lidem com a diversidade de posições e definam os caminhos mais consensuais possíveis, estimulando a cooperação dos atores por meio de incentivos e projeção de ganhos aos participantes. Num país complexo como o Brasil, essa estrada não é fácil de pavimentar. Porém, as alternativas contrárias são piores: um modelo centralizador e hierárquico tem poucas chances de ter apoio e ser implementado homogeneamente em todo o território nacional, ao passo que a fragmentação das ações, com cada um correndo para o seu lado ou procurando vetar os demais, evitará que o país construa um projeto para o século XXI.
A governança colaborativa como eixo de um
projeto nacional envolveria atores estatais, como os poderes e os entes
federativos, e atores sociais, como os agentes econômicos, organizações não
governamentais e movimentos sociais. Não há uma engenharia única que abarque
todos, de modo que haverá mais de uma arena decisória e vários formatos de
pactuação. Também deve-se destacar que nem todos os temas serão resolvidos
celeremente e com o mesmo grau de consenso. Ao invés disso, a resolução de
algumas questões produz efeito positivo sobre o andamento da agenda global, de
modo que o segredo desse modelo governativo é encontrar uma lista de assuntos e
formas de processamento que se transformem numa alavanca poderosa de
transformações.
Neste sentido, um caminho que tem forte
efeito agregador e transformador é apostar na construção de uma governança
federativa com maior amplitude, pactuação e efetividade. Por que mexer na
engrenagem da Federação teria tal poder de mobilizar atores e recursos em prol
da atualização do projeto nacional? Três razões justificam essa visão
governativa. A primeira é que os principais atores formuladores e
implementadores de políticas públicas são os três entes federativos. O
Congresso Nacional e o STF são muito importantes no sistema político
brasileiro, mas suas ideias só vão adiante se a União, os estados e os
municípios, sozinhos ou em parceria, conseguirem transformar a decisão legal em
ação governamental efetiva.
Em outras palavras, as decisões de juízes e
parlamentares são essenciais na democracia brasileira, mas lhes faltam os
braços e pernas que garantem a efetividade do Estado brasileiro. Daí que
articular os centros decisórios principais com a governança federativa é
fundamental para produzir um projeto nacional atualizado.
Uma segunda razão que torna a governança
federativa central para transformar o projeto nacional é que os políticos
concorrem pelos partidos políticos, contudo, fazem-no para postos eletivos nos
três entes da Federação. É por esse meio que constroem suas carreiras, pois, se
não estiverem bem com as suas bases eleitorais territoriais, não ganham novas
eleições.
Por isso que os deputados federais
trabalharão menos no Congresso neste ano e se dedicarão mais às disputas
municipais. Só que o bom funcionamento de cada nível de governo depende de uma
boa engrenagem intergovernamental, de modo que aos políticos deveria interessar
a melhor articulação entre o governo federal, os estados e os municípios. Hoje,
os congressistas sabem disso no varejo, mas precisam compreender a importância
disso no atacado, isto é, como um motor poderoso de transformação global da
nação.
O argumento da relevância da governança
federativa como fator essencial de construção de um novo projeto nacional
completa-se com o fato de que mudar um país é transformar suas políticas
públicas, e o sucesso destas no Brasil é muito relacionado à dinâmica
intergovernamental. Quando se monta uma lista com os principais problemas e
desafios brasileiros, o passo seguinte é formular a seguinte questão: como os
três entes vão atuar nesse tema, em sua esfera e/ou de maneira articulada?
Experimente, leitor, refletir sobre as
soluções de questões coletivas que mais chamaram a atenção no noticiário
recente. A epidemia de dengue, por exemplo. Como lidar com ela? Parte
importante passa pelo papel do Ministério da Saúde na articulação com as
secretarias estaduais e municipais. Se esses laços federativos não forem bem
amarrados ou o forem de forma desigual ao longo do território nacional, o
resultado será um maior número de casos e mortes, como ocorreu, de forma bem
mais trágica, no desastroso federalismo de confronto erigido pelo presidente
Bolsonaro durante a pandemia de covid-19.
Pegue-se outro exemplo: a questão da
segurança pública. Os estados têm todo o aparato policial, mas sozinhos não
conseguirão vencer o crime organizado - até porque, mesmo com um efetivo bem
maior, faltam aos governos estaduais instrumentos de inteligência policial e,
muitas vezes, a neutralidade da burocracia frente aos criminosos para lidar com
essa questão. O inverso também é problemático: não é suficiente ter um corpo
profissional de policiais bem treinados no plano federal para resolver
problemas num território tão grande e complexo. As forças federais têm tido um
papel importante, todavia, se não tiverem a colaboração da burocracia
subnacional, não capturam nem dois fugitivos de uma prisão de segurança máxima,
mesmo com um contingente de centenas de policiais.
A lista de problemas centrais para o país que
só podem ser equacionados com colaboração federativa é extensa. O federalismo
cooperativo, que teve seu desenho geral proposto pela Constituição de 1998,
sendo efetivado por reformas feitas principalmente pelos presidentes Fernando
Henrique e Lula, ainda é bastante útil. Ele aparece em sistemas nacionais de
políticas públicas como o SUS, que salvou o Brasil do desastre bolsonarista na
pandemia. Só que esse modelo, muito marcado pela descentralização municipalista
apoiada por mecanismos indutores do governo federal, já não é capaz de resolver
sozinho novas demandas do século XXI. Acima de tudo, é preciso encaixar mais os
governos estaduais nessa dinâmica, seja por um modelo decisório nacional mais
compartilhado com os estados, seja aumentando o papel de coordenação federativa
das unidades estaduais junto aos municípios.
Seguindo essa linha de raciocínio, uma
proposta alvissareira foi feita pelo Ministério da Fazenda, que quer trocar a
redução dos juros das dívidas estaduais pelo aumento do investimento estadual
em educação profissional de ensino médio. Esse é um tema estrutural para o
desenvolvimento brasileiro no século XXI. Tal modelo federativo pode ser
aprofundado por outros setores do governo federal, abarcando muitas outras
questões atualmente estratégicas. Para isso, dois caminhos institucionais são
essenciais. O primeiro é aumentar a colaboração no processo decisório nacional,
envolvendo mais os governos subnacionais na definição das políticas, bem como
nas formas de parceria e tarefas de cada ente. O segundo parâmetro governativo
diz respeito ao maior envolvimento dos governos estaduais na indução e
coordenação de políticas municipais.
Por meio desses dois caminhos será possível
construir uma governança federativa capaz de lidar com assuntos mal resolvidos
e extremamente relevantes para o Brasil atual. Temas que precisam de uma gestão
municipal forte, mas que necessitam de forte coordenação e colaboração entre os
estados e os governos locais: primeira infância, mudança climática, expansão da
educação inclusiva, promoção de polos intermunicipais para formar e gerenciar o
capital humano na saúde, ampliação de aterros sanitários e de saneamento para
as pequenas cidades, combate à vulnerabilidade em áreas remotas da Amazônia e
definição de modelos de desenvolvimento regionalizado num país em que não é
possível ter um único modelo de atividade econômica.
A mudança da governança federativa também
passa pela articulação governo federal-estados, cujo principal tema que hoje
bloqueia um futuro melhor é o combate ao crime organizado. Para enfrentar essa
difícil questão, a coordenação entre a União e os governos estaduais terá de
ser muito forte e institucionalizada. Não bastam ações pontuais. É preciso uma
agenda de engrenagem intergovernamental de longo prazo.
Se o governo Lula procura uma agenda de
futuro para chamar de sua, eis aqui uma bem poderosa. Se os congressistas
querem ser protagonistas, a chance está nesta proposta de grande transformação
da dinâmica federativa. Se a sociedade quer ir além da polarização e pensar não
apenas no governo de plantão, mas nas próximas décadas, a governança
colaborativa da Federação pode ser um caminho frutífero para termos um projeto
nacional robusto para o século XXI.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política
pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Tomara que avance a discussão. De minha parte, aponto o Art 174 e seu parag. 1º, sobre o Planejamento Indicativo.
ResponderExcluirUma boa visão de futuro, pra ser discutida e implementada!
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