O Globo
Famílias, organizações sociais, formadores de
opinião, investigadores e políticos locais e internacionais não descansaram por
seis anos cobrando a elucidação do crime
Poucos episódios escancararam tanto a
política fluminense quanto a votação na Câmara dos Deputados que selou a
permanência na prisão de Chiquinho
Brazão por suspeita do assassinato de Marielle
Franco e Anderson Gomes. No plenário, 277 votos confirmaram a
decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, a pedido da Polícia Federal e
avalizada pela Procuradoria Geral da República. Na bancada do Rio de Janeiro,
dos 46 parlamentares, apenas 18 concordaram em manter a detenção. Outros 18
votaram contra; dez se abstiveram ou faltaram, indício de alinhamento acanhado
ao colega.
O enfrentamento entre Poderes não é suficiente para explicar por que seis em dez deputados federais do Rio ficaram ao lado de um dos suspeitos de ser o mandante do crime que tirou a vida de uma vereadora no exercício do mandato. A queda de braço entre Legislativo e Judiciário, entre parlamentares e ministros do STF, Moraes em particular, se desenrola há muitos meses. Não é segredo que, sempre que pode, o Legislativo busca alguma medida para sinalizar insatisfação com julgamentos e decisões monocráticas. Aconteceu com o marco temporal na demarcação de territórios indígenas; com a criminalização da posse de drogas para uso pessoal; com mandados de busca e prisão de parlamentares.
Expressar insatisfação com a instituição
vizinha ou duvidar das conclusões de uma investigação não tornam menos
assombroso o alinhamento de uma maioria parlamentar a um suspeito de
feminicídio político. Marielle Franco foi fuzilada — e com ela, o motorista
Anderson — por assassinos de aluguel num crime cuidadosamente planejado, menos
de um mês depois do início da intervenção militar na segurança pública do
estado. O primeiro ano de investigação, com esforços de duas procuradoras do
MP-RJ, Simone Sibilio e Letícia Emile, deu na prisão dos autores, em 2019.
No ano passado, a entrada da PF no caso
revelou, pela delação de Élcio de Queiroz, um dos homicidas à espera de
julgamento, a teia que envolve a indústria da morte no Estado do Rio. O delator
expôs com detalhes as conexões entre milícia e tráfico, roubo e clonagem de
veículos, contrabando de armas, destruição de provas, monitoramento de vítimas
e emboscada.
Na sequência foi a vez de Ronnie Lessa, o
atirador, apontar mandantes e motivação, numa delação, até aqui, só
parcialmente conhecida. No relatório da PF que embasou as prisões de Chiquinho
Brazão, deputado federal, Domingos Brazão, conselheiro do TCE, e Rivaldo
Barbosa, ex-chefe de Polícia Civil do Rio, só há informações de dois de sete
anexos. Datas e locais de encontros entre os envolvidos não foram revelados. Só
quando a denúncia for apresentada o sigilo será derrubado.
Mas PF, PGR e STF concordaram em levar à
prisão três nomes que, relacionados ao assassinato de Marielle, destampam o
caldeirão que, no Rio, mistura política, crime organizado e polícia. Por cinco
anos, a sociedade, no Brasil e lá fora, cobrou respostas sobre mandante e
motivo da execução. Apontado o caminho, homens públicos do Rio tinham o dever
de atuar para extirpar a promiscuidade entre poder político e grupos armados
que dominam e exploram porções cada vez maiores de territórios da Região
Metropolitana.
Marielle teria morrido por incomodar
transações fundiárias da milícia a que os irmãos Brazão estariam ligados,
segundo a PF. A influência da família na região de Rio das Pedras e Jacarepaguá
é conhecida. Muitos políticos tinham os Brazões como passaporte para entrar,
fazer campanha, promover ações nas comunidades da área. Isso explica, mais que
a briga entre Poderes, os votos favoráveis ao deputado ou as omissões e
ausências no plenário da bancada do Rio.
No momento seguinte à prisão, tanto o
governador Cláudio Castro quanto o prefeito Eduardo Paes, da capital,
silenciaram. Paes demitira semanas antes Brazão da Secretaria de Assistência
Social. Na votação em Brasília, o PSD, seu partido, votou maciçamente pela
prisão, tal como MDB e as legendas de esquerda, PT e PSOL à frente. No PL, do
ex-presidente Jair Bolsonaro, predominou o “não”. É do partido o principal
adversário de Paes na campanha à reeleição, o delegado Ramagem. Pré-candidato à
Prefeitura, ele votou por libertar Brazão, tal como Gutemberg Reis, irmão de
Washington Reis, ex-prefeito de Duque de Caxias; Danielle Carneiro, ex-ministra
do Turismo e mulher de Waguinho, prefeito de Belford Roxo; Dani Cunha, filha de
Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara. Washington Quaquá, que deve disputar a
Prefeitura de Maricá, não compareceu à votação.
Estão todos expostos ao escrutínio dos
eleitores pelas escolhas que fizeram. O ano é de eleição municipal, a agenda
que mais se relaciona à regulação sobre posse e ocupação de territórios. Se os
mandantes do assassinato de Marielle e Anderson, hoje, estão presos à espera da
conclusão das investigações que podem indiciá-los, denunciá-los, julgá-los e
condená-los, é por causa de famílias, organizações sociais, formadores de
opinião, investigadores e políticos locais e internacionais que não descansaram
por seis anos cobrando a elucidação do crime. Foi a mobilização intensa dessa
gente que, também anteontem, manteve Brazão na prisão, mesmo com toda a pressão
pela liberação. Em silêncio não se vence.
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