Folha de S. Paulo
Não há regra ou instituição que garanta sua
continuidade se a própria população não quiser
Durante toda a Antiguidade e toda a Idade
Média, a filosofia política
ocidental sempre trabalhou com um conceito básico: virtude. Seja numa
monarquia, numa aristocracia ou numa democracia, é necessário que aqueles que
detêm o poder —um, alguns ou muitos— o utilizem bem, visando ao bem comum e não
a seus próprios interesses egoístas de glória, fama ou poder. A política, com
efeito, era vista como uma derivação da ética.
Saber desenhar boas leis era condição necessária para o bom governo, mas, além e acima disso, o bom uso do poder exigia o regramento do próprio espírito para limitar a cobiça individual e treinar o intelecto a buscar antes o conhecimento objetivo do que a crença reconfortante.
Mesmo Maquiavel,
na Modernidade, manteve a distinção essencial entre vício e virtude. Apenas um
povo virtuoso é capaz de se manter livre. E mesmo o governante, que por vezes
deve agir de maneiras contrárias à moral vigente, só o deve fazê-lo na medida
em que isso o permita atingir "grandes coisas" para a sociedade, como
promover sua independência e prosperidade. Um príncipe que minta e mate por
pura ambição pessoal, é um tirano que será relegado à infâmia.
Quem cindiu de maneira mais drástica a
filosofia política da moral foi Hobbes.
Vivendo num mundo em que as pessoas se matavam em nome de sua visão sobre o bem
absoluto, ele buscou bases para uma sociedade que não dependessem de uma visão
partilhada do bem ou da virtude.
Homens puramente egoístas podem chegar a um
acordo sobre como viver em sociedade? Podem, porque embora não haja consenso
sobre o bem a ser buscado, há um grande mal que todos querem evitar: a morte
violenta. O contrato social que dá origem à sociedade tem como objetivo livrar
os homens desse medo.
A solução específica de Hobbes, o poder
absoluto de um soberano, não envelheceu muito bem. Mas sua abordagem filosófica
impera desde então: ao pensar a sociedade, não fazemos o juízo moral dos
indivíduos que a compõem. O importante é desenhar arranjos que funcionem
independentemente da concepção moral dos indivíduos e de seu caráter. Arranjos
que, por exemplo, impeçam a concentração exagerada de poder e favoreçam a
liberdade individual para cada um viver como quiser.
É a essa tradição liberal que devemos algumas
das mais importantes conquistas em matéria de engenharia do poder: a igualdade
perante a lei, separação dos
Poderes, democracia representativa, direitos individuais
invioláveis.
A virtude nunca saiu totalmente de cena.
Ocorre que, até pouco tempo atrás, ela era menos importante, já que o povão
tinha uma relação muito distante com o poder. Hoje vemos a real democratização
do debate público, graças às redes. E, por isso, neste momento, a democracia
liberal encontra-se em xeque.
Vemos autoridades —dos três Poderes—
legalizando atos que anteriormente seriam tidos por corruptos; reinterpretando
leis para atingir objetivos políticos; testando ao máximo os limites da
liberdade de expressão para minar a credibilidade das eleições; e impondo
limites arbitrários a essa liberdade para silenciar adversários. Da parte do
povo, vemos extremismo, ódio ao outro lado, consumo de informação enviesada,
justificação da violência e anseio por um herói nacional que quebre todas as
regras.
Não há regra ou instituição que garanta a
continuidade dos regimes democráticos liberais se a própria população não
quiser ou não for capaz de se portar de acordo com suas exigências. É preciso
haver uma massa crítica de cidadãos livres e bem informados que se neguem a
aderir a um projeto de poder que se pretenda hegemônico.
A democracia depende da disputa regrada pelo
poder. Ou aprendemos a formar melhores cidadãos, ou caminharemos para o fim da
democracia.
Exatamente.
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