Folha de S. Paulo
Cartunista e autor de 'O Menino Maluquinho'
foi um dos fundadores do semanário, que se tornou marco no jornalismo
Um homem que se escora com um braço numa
parede, que é a própria margem do desenho, está perpassado por um facão –ou uma
espada– que lhe foi cravada nas costas e vazou pelo seu tórax. Com uma
expressão dolorida e de certa forma estóica, o personagem explica para quem o
observa: "Só dói quando eu rio".
A charge icônica de Ziraldo
Alves Pinto, publicada no semanário O Pasquim, é uma dolorosa metáfora de
uma época. Expressa não apenas a opressão política promovida pela ditadura
militar como também a situação existencial daquele tempo, o modo como a
atmosfera sufocante se materializava no corpo e no ânimo –ou no desânimo– de
quem tentava sobreviver ao cerco que se impunha às liberdades.
Tratando-se de um chargista, que dedicou
grande parte de sua obra ao humor, o cartum se revestia de significados também
autobiográficos. Como situar o riso, essa reação tão humana, num contexto que
seria, na realidade, de chorar?
A aparente contradição, com toda sua dimensão trágica, foi enfrentada pelo artista e explorada de maneira surpreendente e brilhante pelo grupo de chargistas do Pasquim, que reunia, entre outros, craques como Jaguar, Fortuna, Henfil, Claudius e Millôr Fernandes.
O semanário, do qual Ziraldo foi um dos
fundadores e grande entusiasta, tornou-se um marco no jornalismo brasileiro não
apenas por ser uma espécie de partido do humor na resistência à ditadura, mas
pela qualidade de seus colaboradores da área de texto –Paulo Francis, Ivan
Lessa, Sérgio Augusto, Tarso de Castro, Ruy Castro, entre tantos– e pelo
desenvolvimento de uma linguagem despida de solenidades e clichês. Um tipo de
intervenção jornalística que confrontava o poder sem heroísmos retóricos ou
demagogias. E que também criticava seus próprios autores.
Com essa pegada crítica e corrosiva, a
chamada turma do Pasquim não vendia gato por lebre. Assumia-se como o que era,
um grupo de humoristas, escritores e jornalistas que pertencia à classe média
ou à elite do Rio e se autoproclamava representante de uma república livre de
Ipanema, bairro carioca que congregava boa parte da intelectualidade e da
boemia bem pensante da cidade –o centro por excelência da cultura brasileira
naquela época.
O Pasquim, criado em 1969, pouco depois do
AI-5, o decreto que recrudesceu o ímpeto autoritário da ditadura, com
cassações, prisões e perseguições implacáveis, foi um sucesso imprevisto.
Chegou a atingir tiragens em torno de 200 mil exemplares em seu auge, um
patamar impensável para o que seria um semanário alternativo de oposição.
Não por acaso, seus colaboradores foram
acossados e presos pelo regime. Alguns de seus colunistas escreveram do exílio,
como Caetano Veloso, na temporada que se viu forçado a passar fora do país, em
Londres, com Gilberto Gil.
Ziraldo foi figura central nesses anos, com
charges políticas e de costumes –algumas, nesta última categoria, que talvez
não fizessem tanto sucesso em nossos dias, por tiradas machistas inevitáveis
naqueles círculos ipanemenses de outras décadas.
O amor genuíno pelo Brasil sempre foi um
traço distintivo de sua obra. Admirador dos quadrinhos americanos, procurou
produzir personagens e histórias brasileiras, que correspondessem à realidade
do país, sua cultura, seu povo e seus dilemas. Um humanista progressista,
Ziraldo conquistou gerações, adultos, jovens e crianças com seus tipos
marcantes –de Jeremias, o Bom ao Menino Maluquinho, passando pelo Pererê ou
Flicts.
Dono de um traço instantaneamente
identificável, seu talento para o desenho e para a gráfica era exuberante.
Ficará eternizado em livros, cartazes, gibis e charges.
Era eu criança quando fui a um lançamento do
livro Flicts em Copacabana e pude vê-lo, ao fazer uma dedicatória, desenhando
uma rosa na folha de rosto. Foi como mágica assistir às pétalas nascendo de
traços que iam e vinham e davam voltas sem que a caneta saísse do papel.
Ziraldo também é isso para quem conviveu com
sua longa fase criativa: uma referência afetiva de uma época. É assim como um
gosto de doce ou uma canção.
Mais um que se vai.Que pena!
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