domingo, 7 de abril de 2024

Merval Pereira - STF na gangorra

O Globo

O verdadeiro papel do STF é o de Suprema Corte, e não o de tribunal criminal de primeiro grau

A preocupação com a prescrição dos crimes sempre foi tema central do Supremo Tribunal Federal (STF), tanto que em seis anos está mudando pela segunda vez seus critérios sobre o foro privilegiado para tapar supostas brechas na legislação. Tamanho cuidado, no entanto, leva a que os juízes de nossa mais alta Corte de Justiça andem em círculos, e voltem à origem do problema, sem resolvê-lo.

Historicamente, o entendimento do Supremo sobre o que se chama tecnicamente de “foro por prerrogativa de função” era ampliativo, para abarcar todas as autoridades incluídas na Constituição Federal, ainda que o crime tivesse sido praticado antes da investidura no cargo e que não guardasse qualquer relação com o seu exercício. Foi esse entendimento ampliado do instrumento que provocou, em 2018, a mudança restritiva, proposta pelo ministro Luis Roberto Barroso.

Na sua crítica ao modelo em vigor, Barroso ressaltou que nos resultados negativos “são muito óbvios” a impunidade e o desprestígio que isso traz para o Supremo. “É tão ruim o modelo que a eventual nomeação de alguém para um cargo que desfrute de foro por prerrogativa é tratado como obstrução de justiça, em tese”, o que seria, na definição de Barroso “quase uma humilhação para o Supremo”.

Esse modelo acarretou, na análise da época, um quadro disfuncional do instituto que acabou por impedir a efetividade da justiça criminal. Segundo Barroso, “ o Supremo Tribunal Federal não tem sido capaz de julgar de maneira adequada e com a devida celeridade os casos abarcados pela prerrogativa. O foro especial, na sua extensão atual, contribui para o congestionamento dos tribunais e para tornar ainda mais morosa a tramitação dos processos e mais raros os julgamentos e as condenações”.

Uma consequência adicional seria a de afastar o Tribunal do seu verdadeiro papel, que é o de Suprema Corte, e não o de tribunal criminal de primeiro grau. Na visão de Barroso, os Tribunais superiores, como o STF, “foram concebidos para serem tribunais de teses jurídicas, e não para o julgamento de fatos e provas”. Aliás, Barroso chegou a aventar a hipótese de que fosse criado um novo tribunal penal para tratar dos casos criminais de quem tem foro privilegiado, mas a ideia não teve o apoio dos colegas, sendo aventada candidamente a hipótese de que o poder do Supremo seria esvaziado diante desses “super-ministros” que cuidariam dos casos das centenas de autoridades protegidas pelo instituto.

A decisão de que somente tem foro por prerrogativa de função a pessoa que está “no exercício” do respectivo cargo público, e pratica a infração penal “em razão” deste foi tomada pela maioria do plenário do STF sob a alegação de que houve uma “mutação constitucional em sentido técnico”, provocada por três fatores: a realidade fática mudou, ou a percepção social do Direito mudou, ou as consequências práticas de uma orientação jurisprudencial revelaram-se negativas. Os três fatores foram identificados na regra jurídica sobre foro privilegiado, na opinião majoritária do plenário.

Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal, para evitar o chamado “efeito gangorra”, quando o réu renuncia ao cargo, podendo gerar prescrição de eventual punição, decidiu estabelecer o fim da instrução processual como o momento a partir do qual “a competência do órgão especial seja fixada de maneira imodificável”.

Como se vê, na decisão de seis anos atrás, evitar a prescrição da pena já era uma preocupação do legislador, que agora utiliza o mesmo argumento para ampliar ainda mais o alcance do foro privilegiado. Se, naquela época, a amplitude do foro privilegiado prejudicava os trabalhos do STF, por que agora, abrangendo mesmo aqueles que em qualquer momento da vida tiveram foro privilegiado, poderia evitar as eventuais prescrições ?


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