O Globo
O verdadeiro papel do STF é o de Suprema
Corte, e não o de tribunal criminal de primeiro grau
A preocupação com a prescrição dos crimes
sempre foi tema central do Supremo Tribunal Federal (STF), tanto que em seis
anos está mudando pela segunda vez seus critérios sobre o foro privilegiado
para tapar supostas brechas na legislação. Tamanho cuidado, no entanto, leva a
que os juízes de nossa mais alta Corte de Justiça andem em círculos, e voltem à
origem do problema, sem resolvê-lo.
Historicamente, o entendimento do Supremo sobre o que se chama tecnicamente de “foro por prerrogativa de função” era ampliativo, para abarcar todas as autoridades incluídas na Constituição Federal, ainda que o crime tivesse sido praticado antes da investidura no cargo e que não guardasse qualquer relação com o seu exercício. Foi esse entendimento ampliado do instrumento que provocou, em 2018, a mudança restritiva, proposta pelo ministro Luis Roberto Barroso.
Na sua crítica ao modelo em vigor, Barroso
ressaltou que nos resultados negativos “são muito óbvios” a impunidade e o
desprestígio que isso traz para o Supremo. “É tão ruim o modelo que a eventual
nomeação de alguém para um cargo que desfrute de foro por prerrogativa é
tratado como obstrução de justiça, em tese”, o que seria, na definição de
Barroso “quase uma humilhação para o Supremo”.
Esse modelo acarretou, na análise da época,
um quadro disfuncional do instituto que acabou por impedir a efetividade da
justiça criminal. Segundo Barroso, “ o Supremo Tribunal Federal não tem sido
capaz de julgar de maneira adequada e com a devida celeridade os casos
abarcados pela prerrogativa. O foro especial, na sua extensão atual, contribui
para o congestionamento dos tribunais e para tornar ainda mais morosa a
tramitação dos processos e mais raros os julgamentos e as condenações”.
Uma consequência adicional seria a de afastar
o Tribunal do seu verdadeiro papel, que é o de Suprema Corte, e não o de
tribunal criminal de primeiro grau. Na visão de Barroso, os Tribunais
superiores, como o STF, “foram concebidos para serem tribunais de teses
jurídicas, e não para o julgamento de fatos e provas”. Aliás, Barroso chegou a
aventar a hipótese de que fosse criado um novo tribunal penal para tratar dos
casos criminais de quem tem foro privilegiado, mas a ideia não teve o apoio dos
colegas, sendo aventada candidamente a hipótese de que o poder do Supremo seria
esvaziado diante desses “super-ministros” que cuidariam dos casos das centenas
de autoridades protegidas pelo instituto.
A decisão de que somente tem foro por
prerrogativa de função a pessoa que está “no exercício” do respectivo cargo
público, e pratica a infração penal “em razão” deste foi tomada pela maioria do
plenário do STF sob a alegação de que houve uma “mutação constitucional em
sentido técnico”, provocada por três fatores: a realidade fática mudou, ou a
percepção social do Direito mudou, ou as consequências práticas de uma
orientação jurisprudencial revelaram-se negativas. Os três fatores foram
identificados na regra jurídica sobre foro privilegiado, na opinião majoritária
do plenário.
Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal, para
evitar o chamado “efeito gangorra”, quando o réu renuncia ao cargo, podendo
gerar prescrição de eventual punição, decidiu estabelecer o fim da instrução
processual como o momento a partir do qual “a competência do órgão especial
seja fixada de maneira imodificável”.
Como se vê, na decisão de seis anos atrás,
evitar a prescrição da pena já era uma preocupação do legislador, que agora
utiliza o mesmo argumento para ampliar ainda mais o alcance do foro
privilegiado. Se, naquela época, a amplitude do foro privilegiado prejudicava
os trabalhos do STF, por que agora, abrangendo mesmo aqueles que em qualquer
momento da vida tiveram foro privilegiado, poderia evitar as eventuais
prescrições ?
Lendo e tentando entender essa barafunda jurídica.
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