O Globo
“Vocês acreditam em Deus? Vocês acreditam em
milagre?”
As duas perguntas poderiam abrir a pregação
de um pastor. Na quinta-feira, abriram o discurso do presidente da República.
Lula foi a Arcoverde, no interior de
Pernambuco, inaugurar uma elevatória de água. Diante da plateia sertaneja,
descreveu a transposição do São Francisco como uma obra divina.
“Então, qual foi o primeiro milagre? O
primeiro milagre é a gente estar vivendo o que a gente está vivendo hoje aqui”,
afirmou.
O presidente recordou a infância no agreste,
quando buscava água num açude barrento. Lembrou doenças causadas pela falta de
saneamento, como a esquistossomose. Criticou a demora para a canalização do
rio, prometida desde o Império.
“Esse é um milagre que aconteceu com um cara que viveu a seca”, disse. Em seguida, ele definiu sua própria eleição como um “ato de fé” dos brasileiros. “Isso só pode ser feito porque Deus existe. O homem lá de cima falou: ‘Eu vou ajudar o nordestino através de um nordestino’. E cá estou eu”, empolgou-se.
Em 17 minutos no palanque, Lula falou 16
vezes em “milagre”, 11 vezes em “Deus” e cinco vezes em “fé”. O discurso
coincidiu com uma guinada na comunicação oficial. O governo lançou uma ofensiva
publicitária com o slogan “Fé no Brasil”. Uma tentativa explícita de melhorar
sua avaliação entre os evangélicos.
O mote não é novo. Já embalou as campanhas
presidenciais de Guilherme Afif, em 1989, e Anthony Garotinho, em 2002. Os dois
candidatos apostaram na religiosidade dos eleitores. Um amargou o sexto lugar,
com 4% dos votos. Outro terminou em terceiro, com 17%.
Pesquisas mostram que Lula encontra mais
resistência entre os evangélicos. É natural que o governo busque se aproximar
do segmento. O problema é acreditar que a solução esteja na propaganda — e na
reciclagem de um slogan de eleições passadas.
Não basta falar em Deus para atrair a
simpatia dos fiéis. Evangélicos vão ao supermercado, fazem feira, pagam
boletos. Sentiram a alta no preço do arroz e do feijão, que elevou a cesta
básica e apertou o orçamento das camadas mais pobres. Combater a inflação de
alimentos e retomar o trabalho de base seria mais útil que apelar ao marketing
religioso.
Lula ainda enfrenta outro problema: a aliança
do bolsonarismo com as grandes igrejas e seus representantes no Congresso. Além
de investir na retórica conservadora, o capitão agradou o setor com vantagens
terrenas, como cargos e isenções fiscais. Em contrapartida, os pastores
reforçaram a demonização da esquerda em geral e do PT em particular.
No fim de 2023, o presidente admitiu que a
sigla não consegue “chegar aos evangélicos”. “Precisamos aprender a construir
um discurso para falar com essa gente”, desabafou. No mês passado, ele
acrescentou que a religiosidade não pode ser explorada como instrumento
político. Faltou combinar com os responsáveis pela propaganda oficial.
Lula parece convencido de que o caminho para
recuperar popularidade é falar a língua dos fiéis. O risco é exagerar na dose e
soar artificial, como se viu em Arcoverde.
Muito bom! São as contradições de Lula, um político como outro qualquer, mas com muita experiência de vida.
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