O Globo
Uma das consequências nefastas do
antibolsonarismo é que ele distorceu o entendimento do público sobre a ciência
O populismo antissistêmico que a direita
abraçou é um bicho com que é difícil lidar. É anti-institucional,
anti-intelectual, agressivo e selvagem — em resumo, não sabe usar os talheres.
Quando chegou ao poder com Bolsonaro e passou a comandar a burocracia do
Estado, recebeu acertadamente oposição. Mas, em geral, essa oposição tomou a
forma de uma negação automática: se Bolsonaro recomenda de maneira imprudente,
a atitude responsável passou a ser afirmar enfaticamente o contrário.
Em nenhum momento o controle do Estado pelo populismo foi mais crítico que durante a pandemia. Bolsonaro coordenava o SUS, controlava o Ministério da Saúde, a Anvisa e a Fiocruz, um pesadelo. Na ânsia de se contrapor às teses selvagens e absurdas dele sobre o coronavírus e a pandemia, deixamos de analisar ideias próximas às dele ou que poderiam ser identificadas com ele. Isso nos levou a muitos erros na condução da pandemia —erros sobre os quais ainda não nos debruçamos.
Em artigo no Nexo Jornal, o médico e
professor da UFRJ Olavo Amaral chamou a atenção para um estudo da Universidade
de Oxford, recentemente publicado, que avalia a eficácia da ivermectina contra
a Covid-19. O estudo descobriu que a substância não previne hospitalizações ou
mortes, mas reduz o tempo que o paciente experimenta os sintomas, de 16 para 14
dias em média. A ivermectina ficou tão associada ao “negacionismo” trumpista e
bolsonarista que os autores do estudo provavelmente acharam que não era responsável
destacar esse resultado, enfatizando, em vez disso, a ineficácia para reduzir
hospitalizações e mortes.
Não foi o primeiro estudo que mostrou a
eficácia da ivermectina. Pelo menos quatro outros grandes estudos desde 2022
mostraram que a substância tinha efeito mensurável contra a Covid-19. No
artigo, Amaral lembra que, em 2021, antes da publicação dos estudos, a imprensa
repetiu centenas de vezes, com o endosso de cientistas, que a ivermectina era
“comprovadamente ineficaz”. Mas, se naquele momento não havia estudo sólido
recomendando a ivermectina, também não havia nenhum estudo sólido provando sua
ineficácia.
Tudo começou com a irresponsabilidade do
presidente. Bolsonaro não dispunha de evidências científicas para recomendar
ivermectina (ou cloroquina). Só que, para se opor a essa irresponsabilidade,
cometemos o erro oposto. Afirmamos, equivocadamente, também sem boas
evidências, que a substância era “comprovadamente ineficaz”.
Não foi só com a ivermectina que erramos.
Como Bolsonaro se opôs à quarentena para proteger a atividade econômica, a
imprensa e os cientistas o contestaram, afirmando (corretamente) que a
quarentena era a posição cientificamente respaldada. Mas não ficamos aí. A
necessidade de nos contrapormos com vigor à posição irresponsável de Bolsonaro
nos impediu de discutir com tranquilidade e comedimento em que medida
deveríamos adotá-la.
O antibolsonarismo bloqueou no debate público
a discussão sobre a flexibilização da quarentena nas escolas. Quem quer tenha
defendido a volta às aulas das crianças durante a pandemia foi automaticamente
ignorado, tachado de bolsonarista. Não apenas não pudemos discutir na ocasião,
como segue um tabu político revisitar criticamente nossa política abrangente de
aulas remotas durante a pandemia.
Uma das consequências mais nefastas desse
antibolsonarismo é ter distorcido o entendimento do público sobre a ciência.
A ciência é feita de suposições cuja validade dura apenas até ser superada por
entendimentos mais abrangentes. Em momentos de crise, quando o poder público
lhe pede orientação, o que ela pode fazer é indicar o que parece ser o melhor
caminho. A maneira correta de apresentar essa escolha é lembrar ao público que
o caminho sugerido é apenas a melhor recomendação à luz das evidências
disponíveis. Se não fizermos essa ressalva, e o caminho sugerido se mostrar
depois equivocado, a confiança na ciência sairá abalada.
Durante a pandemia, não tomamos esse cuidado.
Para nos contrapormos à irresponsabilidade populista, transformamos essa
recomendação “à luz das evidências disponíveis” em afirmação categórica que se
dizia científica, mas na verdade era apenas dogmática. A ciência precisa se
rever. Precisa estar aberta à contestação —e não pode se furtar a investigar
uma hipótese apenas porque um populista irresponsável a defendeu. O
antipopulismo por princípio não faz bem para a ciência e não faz bem para a
política pública.
Excelente! E principalmente muito CORAJOSO! A maioria dos cientistas prefere ignorar seus possíveis erros, ainda mais quando estes podem afetar ou prejudicar seus dogmas.
ResponderExcluirMuito bom!
ResponderExcluirTambém li o artigo do Nexo e sugiro a leitura.
À época, um dos colunistas a sugerir a volta dos estudantes às escolas, de forma organizada e planejada, foi Demétrio Magnoli. Pois bem.
O autor foi achincalhado e apedrejado, a torto e a direito, por todos aqueles que se colocavam como porta-vozes do discurso dito científico. Os resultados ( negativos ) para milhares e milhares de crianças e adolescentes não tardaram a chegar.
Enfim.
Crianças na escola na certa seria um desastre,penso eu.
ResponderExcluirCom toda sinceridade espero que arrependimento não mate. Pois já estamos tendo muitas mortes e sequelas, e isso atinge a todos direta ou indiretamente, não importa sua ideologia ou que decisões tomou nessa crise do vírus. Precisamos restabelecer o entendimento, a honestidade, e buscar a cura de todas essas mazelas.
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