sábado, 27 de abril de 2024

Eduardo Affonso - Movimento Brasileiro de Analfabetização

O Globo

Nada é tão ruim que não possa evoluir para péssimo. À direita, uma prefeita joga livros no lixo; à esquerda, uma senadora tenta encarecê-los

Quando ainda nem sonhava vir a ser cancelado por gente com menos de uma migalha de seu talento, Monteiro Lobato escreveu que “um país se faz com homens e livros”. Hoje, o aforismo teria de ser reescrito: “Uma nação se faz com criaturas humanas e seus saberes”. Tanto o macho da espécie como metonímia para a Humanidade quanto as folhas de papel, cortadas e encadernadas, já tiveram melhores dias.

O último ocupante da Presidência da República, desde FH, a demonstrar ter tido contato imediato e proveitoso com livros foi Michel Temer.

Jair Bolsonaro lia, no máximo, passagens bíblicas e minutas de golpe — eclético, chegou a indicar a seguidores as obras de Churchill, Brilhante Ustra e Olavo de Carvalho.

Dilma Rousseff era capaz de citar alguma coisa de orelha — sabia que Proust tinha a ver com madeleines. Enquanto não lhe era possível estocar vento, dizia estocar livros — sem, entretanto, conseguir mencionar um título sequer dos que estivesse lendo.

Lula afirmou ter lido muito na prisão — certamente mais que em todo o tempo que passou fora dela. Teria ido de “Um defeito de cor” (972 páginas) a “Grande sertão: veredas” (942 neologismos catalogados), passando pelo lirismo de “O amor nos tempos do cólera”, pela inteligência de “Sapiens” e pelo humor involuntário da hagiografia de Carlos Marighella. A julgar pelas ideias que professa e pela forma de expressá-las, só este último deixou marcas.

O atual presidente já declarou ter preguiça de ler e que a leitura lhe dá sono. Como sua decantada sabedoria política vem muito mais da intuição que da instrução, ele parece não reconhecer a importância da leitura na formação do pensamento. Daí a bronca no ministro da Fazenda — que, “em vez de ler um livro, tem que perder algumas horas conversando no Senado e na Câmara”. (O verbo “perder” deve ter sido ato falho.)

Talvez Lula ignore que a competência e o poder de persuasão de seu ministro tenham relação com tudo o que ele leu e escreveu. Talvez queira resolver o problema do analfabetismo funcional dos nossos estudantes adaptando à leitura o que já disse da alimentação: “Se tem gente analfabeta, [é porque] tem gente lendo demais”.

Relatório de 2021 do estudo Pirls (Progress in International Reading Literacy Study) coloca os brasileiros (da 4ª série do ensino fundamental) na rabeira do ranking quanto às habilidades de articulação de ideias e interpretação e análise crítica de texto — atrás de seus pares de Azerbaijão, Uzbequistão e Kosovo, à frente apenas de iranianos, jordanianos, egípcios e sul-africanos. É o aluno que não lê; quando lê, não entende; quando entende, não avalia criticamente ou forma opinião.

Mas nada é tão ruim que não possa evoluir para péssimo. À direita, uma prefeita joga livros no lixo; à esquerda, uma senadora tenta encarecê-los. Um Projeto de Lei agora ressuscitado propõe fixar o preço do livro em todos os seus formatos e limitar descontos. A intenção é das melhores: proteger as pequenas livrarias das práticas agressivas dos grandes distribuidores (leia-se Amazon). O resultado será o livro ainda mais inacessível.

Já dizia o slogan da editora Civilização Brasileira: “Quem não lê, mal ouve, mal fala, mal vê”. Na lixeira ou nas nuvens, decorando estantes ou cabulando penas, o livro continua sendo uma “felicidade clandestina” para poucos que ainda insistem em ouvir, falar e ver.

 

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