segunda-feira, 15 de abril de 2024

Paulo Henrique Cassimiro - O propagador da democracia

Folha de S. Paulo

Biografia excelente detalha o percurso e as contradições do pensador francês Alexis de Tocqueville (1805-1859), herdeiro da aristocracia arrasada pela Revolução Francesa que anteviu o surgimento de um novo mundo político e social após viajar aos Estados Unidos, dedicando sua vida e obra a defender a democracia como melhor sistema de governo e valores como liberdade e igualdade

Quando iniciou sua viagem pela jovem República norte-americana em 1831, Alexis de Tocqueville levava consigo o peso da história francesa.

Pelo lado do pai, descendia de uma família de militares da Normandia; pelo lado da mãe, de uma longa dinastia de nobres que ocuparam posições de prestígio e poder na burocracia estatal da monarquia francesa.

Seu bisavô materno, Chrétien-Guilhaume de Malesherbes —censor real que autorizou a publicação da enciclopédia iluminista—, foi um dos advogados de Luís 16 após o início da Revolução Francesa, em 1789. Seu avô, o marquês de Rosambo, foi presidente do Parlamento de Paris, órgão máximo do Judiciário no Antigo Regime.

Sua tia casou-se com o irmão de François-René de Chateaubriand, o mais importante escritor francês da primeira metade do século 19. Em 1794 todos eles estavam mortos, enforcados ou guilhotinados pela revolução. Os pais de Tocqueville passaram 10 meses na prisão e foram salvos pela queda de Robespierre e dos jacobinos, em julho de 1794.

Nascido em 1805, Tocqueville tinha tudo para ser um reacionário convicto, defensor da aristocracia francesa contra o legado da revolução. Todavia, sua viagem pela América significou uma experiência definitiva para pensar o surgimento de um mundo político e social novo, cuja tendência à expansão representava o destino inexorável de uma civilização que deixava para trás suas estruturas hierárquicas e aristocráticas milenares e começava a se organizar a partir da reivindicação do princípio da igualdade.

Esse é o mundo que Tocqueville descreve em "A Democracia na América", enorme e complexo relato de viagens publicado em dois volumes, em 1835 e 1840, que se tornou um texto definidor dos novos significados que atribuímos à velha palavra democracia.

É justamente a relação entre suas experiências pessoais, intelectuais e políticas e a escrita de seus textos mais importantes que o historiador francês Olivier Zunz acompanha em "O Homem que Compreendeu a Democracia: A vida de Alexis de Tocqueville".

A narrativa segue os anos de formação de Tocqueville, suas influências literárias e contatos pessoais, as razões para empreender a viagem aos Estados Unidos, suas reações aos acontecimentos políticos mais importantes do período, além de seu próprio engajamento com a política.

Tocqueville é eleito para a Câmara dos Deputados ainda durante a monarquia dos Orleans e, posteriormente, para a Assembleia Constituinte após a Revolução de 1848.

Também foi, por um curto período de tempo, ministro das Relações Exteriores durante a presidência de Luís Napoleão Bonaparte, figura a quem desprezava e sobre quem, após o golpe de Estado de 1851, pensou em dedicar um ensaio, desvendando suas estratégias despóticas de conquista do poder, assunto sobre o qual Karl Marx escreveria posteriormente em "O 18 de Brumário de Luís Bonaparte".

Todas essas experiências são pano de fundo para que o livro nos conte como vai sendo construída a interpretação de Tocqueville sobre as mudanças sociais e políticas da Era das Revoluções.

O texto de Zunz, contudo, não trata apenas das influências e experiências que levaram o pensador a escrever "A Democracia na América". Escapando do senso comum, o livro nos apresenta suas posições menos conhecidas sobre temas como a colonização da Argélia e a escravidão.

Tocqueville via como uma das condições de sucesso da igualdade na democracia americana a existência de uma sociedade de "cidadãos proprietários": o fato de que a disputa por terras não era um problema central para os cidadãos daquela recém-criada República.

O pensador reconhece essa "disponibilidade de terras" como um motivo para a França colonizar a Argélia. Apesar de insistir que a colonização não deveria ser exercida por meio da violência contra os povos locais, Tocqueville se mostrava consciente dos conflitos que a ocupação de novos territórios poderia ocasionar, o que torna impossível ignorarmos a dimensão colonial de seu pensamento e suas consequências para uma visão potente, porém limitada, das ideias de liberdade e igualdade.

Diferentes, contudo, foram suas posições assumidas com relação à escravidão. Zunz recupera algumas das opiniões a favor da abolição nas colônias defendidas por Tocqueville durante sua experiência como deputado, suas conexões com movimentos abolicionistas desde a juventude, suas críticas ao amigo pessoal, o teórico racista Gobineau, por sua filosofia determinista que excluiria a possibilidade da liberdade humana.

Já em "A Democracia na América", Tocqueville chamava atenção para os conflitos que poderiam surgir em uma sociedade que se organizava sob o princípio da igualdade entre brancos, acompanhada da profunda desigualdade que marcava a exclusão da população negra.

Zunz nos mostra, inclusive, como a obra de Tocqueville e sua valorização da experiência da igualdade americana foi utilizada como arma por abolicionistas quando a luta pelo fim da escravidão se acentuou em meados do século 19.

Quando, após a morte de Tocqueville, seu amigo e parceiro de viagens Gustave de Beaumont publicou seus trabalhos e correspondências inéditas em 1861, Sainte-Beuve, o crítico literário mais importante e temido da França, escreveu que o autor de "A Democracia na América" "começou a pensar antes de saber o que quer que fosse".

Em verdade, se olharmos de perto seus manuscritos e suas cartas, vemos que toda a sua obra é realmente uma tentativa angustiada de definir e explicar uma experiência histórica nova, cujo nome nem sempre lhe era evidente, que indicava uma enorme incerteza sobre seu futuro.

Um mundo que apontava para transformações profundas nos valores e nas crenças que orientavam a vida ordinária dos indivíduos, o que Tocqueville chamou de democracia, dando à palavra um significado próximo daquele que usamos ainda hoje.

O livro de Olivier Zunz é uma excelente narrativa biográfica sobre as inovações e contradições das fascinantes obra e vida de Alexis de Tocqueville.

O HOMEM QUE COMPREENDEU A DEMOCRACIA: A VIDA DE ALEXIS DE TOCQUEVILLE

Preço R$ 159,90 (490 págs.)

Autoria Olivier Zunz

Editora Record

Tradução Carlos Eugênio Marcondes de Moura

2 comentários: