O Globo
Há robusta evidência científica sobre os efeitos positivos e longevos, para toda a sociedade, do investimento nos primeiros anos de vida e na adolescência
Programas de transferência condicionada de renda surgiram no mundo na década de 90, com dois objetivos principais. Um, imediato, é o alívio da situação de pobreza das famílias mais vulneráveis. O outro, de médio e longo prazo, procura combater causas estruturais da pobreza ampliando o acesso de crianças e jovens aos serviços de educação, saúde e assistência social. No Brasil, o programa mais conhecido com esse escopo é o Bolsa Família, uma das políticas públicas mais bem avaliadas ao longo do tempo.
Sabemos que a pobreza está concentrada entre
as crianças no Brasil. Mas a situação seria muito pior caso não existissem
esses programas. Essa é uma das conclusões do recente estudo “A Pobreza na Primeira Infância”, divulgado pela Fundação Maria
Cecília Souto Vidigal. O trabalho mostra que, sem políticas como o Bolsa
Família, a taxa de pobreza entre crianças de zero a seis anos estaria em 24%.
Com o novo desenho do programa, que aumentou o repasse para famílias com
crianças nessa faixa etária, o percentual cai para 13%. Uma redução
significativa, mas em patamar ainda inaceitável.
O estudo mostra ainda que o aumento de
repasses diretos às famílias mais vulneráveis reduz a desnutrição crônica ou
aguda entre crianças de zero a três anos. No entanto, corroborando os achados
da literatura acadêmica no tópico, a pesquisa nos lembra que “políticas de
transferência de renda são mais eficazes para a redução da pobreza quando vão
além da mera redução da fome e são elaboradas sob a perspectiva do
desenvolvimento integral das crianças”, direito a ser plenamente assegurado a
partir do acesso com qualidade a serviços de saúde, educação, assistência
social, entre outros.
A maior probabilidade de uma trajetória
efetiva de desenvolvimento integral das crianças passa por uma estratégia, de
governança complexa, que combine as agendas programáticas intergovernamental
(União, Estados e municípios), intersetorial (articulando políticas públicas de
diferentes secretarias) e extragovernamental (incluindo sociedade civil e
outros poderes na busca por soluções). Nessa direção temos boas experiências
com resultados relevantes nos estados: Mais Infância
(CE); Criança
Alagoana – Cria (AL); Primeira Infância Melhor – PIM (RS); Mãe Coruja
(PE) e nos municípios: São Paulo Carinhosa; CRIAR e COMPAZ no
Recife; Família Que Acolhe em Boa Vista; Cidade das Crianças em Jundiaí.
Do ponto de vista do financiamento, um sinal
positivo nesse contexto é que as mudanças demográficas facilitam o aumento do
investimento per capita na infância. Dados do Registro Civil de 2022, divulgados pelo IBGE há duas
semanas, mostraram que, pelo quarto ano consecutivo, houve queda no número de
nascimentos, representando o menor número desde 1977. Isso significa que, mesmo
que nosso bônus demográfico já esteja se encaminhando para o fim, ainda há
tempo para aproveitá-lo investindo, mais e melhor, na primeira infância.
A estrutura demográfica antiga, com elevado
número de crianças e jovens em relação à população adulta e idosa, é, aliás,
parte importante da razão para a pobreza estar concentrada na primeira
infância. Com um número relativamente menor de idosos na população, era mais
fácil – do ponto de vista do impacto orçamentário – garantir uma renda mínima
para esse grupo com políticas como o Benefício de Prestação Continuada, voltado
para pessoas com renda per capita familiar inferior a ¼ do salário-mínimo, de
65 anos ou mais ou com deficiências severas.
Com os ventos demográficos mais favoráveis ao
investimento na primeira infância por causa da queda na fecundidade, há outros
riscos a serem considerados. Um deles é justamente a pressão pela diminuição da
fatia proporcional do orçamento público destinado a áreas de educação e saúde.
Hoje, as duas áreas são protegidas com o estabelecimento de pisos mínimos de
investimento. Todavia, segundo o Relatório de Projeções Fiscais, divulgado
recentemente pelo Tesouro Nacional, saúde e
educação podem perder até R$ 504 bilhões em nove anos caso haja
uma mudança nas regras do piso, uma hipótese frequentemente debatida. A disputa
orçamentária entre as duas áreas também é um risco relevante para a primeira
infância.
Há robusta evidência científica sobre os
efeitos positivos e longevos, para toda a sociedade, do investimento nos
primeiros anos de vida e na adolescência. Mas, para isso, não podemos – mais
uma vez em nossa história – negligenciar políticas de infância e juventude.
Isso envolverá tanto a garantia de financiamento adequado, quanto a busca
permanente pelo uso mais racional e eficiente dos recursos disponíveis.
*Economista, Superintendente Executivo do
Instituto Unibanco e Professor Associado da Fundação Dom Cabral
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