sexta-feira, 26 de abril de 2024

Vinicius Torres Freire - A guerra do imposto começa agora

Folha de S. Paulo

Na regulamentação das exceções, pode passar boi, boiada e muito favor para amigos do poder

O governo mandou ao Congresso o que é, até aqui, um projeto razoável de regulamentação da mudança dos impostos sobre consumo. Procurou manter a qualidade restante da reforma tributária, definida em termos gerais por meio de emenda à Constituição, de dezembro de 2023.

Para citar apenas um aspecto da reforma, o pessoal tentou limitar exceções ou privilégios.

Na emenda constitucional, deputados e, em especial, senadores criaram um excesso de regimes diferenciados, favorecidos e específicos. Isto é, bens e serviços para os quais o imposto será menor.

Quanto mais exceções, pior a qualidade econômica da reforma. Além disso, mais regras serão necessárias para enquadrar com precisão produtos e atividades econômicas que merecerão tratamento diferente. É oportunidade para lobby ou mutreta.

Pelo menos 20 profissões ganharam esse direito, por exemplo (redução de 30% da alíquota). É o caso também de "produções nacionais artísticas, culturais, de eventos, jornalísticas e audiovisuais" (redução de 60%).

A concessão genérica estava na emenda constitucional. A regulamentação inclui, entre outros, feira de negócios, show, carnaval, programa de auditório (sic), "entrevistas e clipes" (influencers?). O que mais os lobbies vão colocar nessa e noutras caixinhas de imposto menor ou zero?

Em nome da justiça social, o imposto sobre alguns produtos e serviços pode ser menor (comida, remédio, escola, saúde). Melhor é devolver o imposto pago para os mais pobres, em vez de se generalizar o benefício, que será apropriado também pelos ricos (como ocorre com a atual desoneração de alimentos).

Outras leis, ordinárias, serão necessárias para especificar a situação. É o que vai acontecer com o imposto seletivo sobre veículos, por exemplo, que vai variar de acordo com potência ou impacto ambiental. Produtores de refrigerantes vão tentar escapar do "seletivo" (que tenta induzir a redução do consumo de "males" para a saúde e o ambiente). Etc.

A definição do que são "produtos agropecuário, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura" é campo aberto de incerteza. "In natura", na lei, é "produto tal como se encontra na natureza", que não seja industrializado ou "acondicionado em embalagem de apresentação", embora possa haver "acondicionamento indispensável para o transporte". Hum.

Enfim, com mais exceções, mais conflito haverá entre contribuinte e Receita: mais arbítrio oficial ou lobby privado e judicialização.

Esses são apenas poucos exemplos de como as especificações de regimes diferenciados podem dar pano para a manga. Atualmente, é muitíssimo pior. Mas podemos fazer besteira nova.

O imposto, no fim das contas, é pago pelo consumidor. Uma redução de alíquota, porém, evita o risco de que o vendedor do bem ou prestador de serviço veja seu mercado diminuir, em certos casos (em particular no de produtos e serviços que não sejam de grande necessidade). Esse o motivo da disputa.

O governo diz que a alíquota média da nova tributação sobre consumo será de 26,5%; a emenda constitucional da reforma proíbe aumento de carga tributária. Em tese, EM MÉDIA, vamos pagar o mesmo tanto de imposto que pagamos hoje, mas com ganho grande de eficiência econômica.

Por bom motivo, a carga de alguns setores aumentará. Porém, a carga de alguns ainda será menor do que a de outros por privilégio de quem tem poder político-econômico.

A discussão vai bem além de alíquotas. A reforma é muito complexa e enorme. Os entendidos ainda mastigam as centenas de artigos da regulamentação. Mas temos de prestar muita atenção ao que se vai fazer dessa oportunidade rara de melhorar a medula econômica do país.

 

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