Folha de S. Paulo
Deixamos o crime tomar o país até chegar à
política; estamos gestando mais desastre
Nos anos 1990, autoridades do governo do
estado de São Paulo diziam que o PCC não
existia. Era uma fantasia da imprensa. Mas esse unicórnio havia sido fundado
em 1993, até com estatuto.
Em 2001, o PCC já dominara presídios
paulistas. Em 2002, passou a melhorar a governança. Bandidos mais destemperados
perderam o poder ou a cabeça. Avaliou-se que a aliança com o Comando Vermelho
não rendia sinergias. Profissionalizou-se a gestão, sob o comando
de Marcos Camacho, aliás Marcola.
Com o levante de 2006, o PCC mostrou que era capaz de aterrorizar e paralisar São Paulo com ataques a policiais, rebeliões em presídios, boatos, atentados e crimes em geral.
"A história do levante homicida do PCC
começa a se desvanecer. Transforma-se aos poucos em um desses confusos casos
judiciais que amarelecem nas gavetas da burocracia e da politicagem. Talvez
voltemos a saber de Marcola quando descobrirmos o mensalão do PCC. Isso mesmo,
deputados levando dinheiro do lobby oficial do crime" escrevia em
2006 este jornalista, nesta Folha,
duas semanas depois da insurreição.
Não era previsão, apenas desespero amargo.
Mas aconteceu. Há indícios gritantes, para ficar no eufemismo, de que vereadores
paulistas recebem propina do PCC. O suborno, na verdade, é apenas parte de
esquema muito maior de expansão do poder político e dos negócios do crime, já
estabelecido em ramos como transporte público, postos de combustíveis,
comércio, limpeza e vigilância.
Depois de presídios, o PCC dominou bairros
pobres com autoridade quase estatal (poder de polícia, Justiça e
"regulação" econômica). Invadiu
a Amazônia. Ainda não se sabe qual o ramo de atuação de cada grupo, mas PCC
e similares organizam ou financiam extração pirata de madeira e minério,
tráfico de pessoas, desmatamento. O crime também se internacionalizou. É parte
das cadeias globais de valor de cocaína.
A novidade é que promotores e polícia
investigam esse horror de modo sistemático no estado. A leitora dirá que o
jornalista é ingênuo, pois coisa pior já acontecera. Os Bolsonaro bancavam
parentes da milícia, por exemplo.
Entre a política municipal de São Paulo e Rio
e as alturas do poder federal, quanto mais já estará tomado pelo crime? A
pergunta também é ingênua. Como mostram tantos cientistas sociais, há mais do
que invasão do Estado pelo crime, mas o desenvolvimento de um Estado criminoso.
Enquanto isso, o Congresso
se ocupa de constitucionalizar a prisão em massa de gente pega com trouxinha de
maconha.
Estas linhas nem chegam a ser um resumo
superficial do desastre sabido. A ideia é lembrar como deixamos um monstro
crescer até ficar fora de controle, se é que já não nos controla. É fácil
listar outros desastres em gestação.
A desmoralização e o fracasso das campanhas
de vacinação são um convite a epidemias e à morte de crianças.
O avanço parlamentar sobre o Orçamento vai
esgotar em breve a capacidade de investimento federal de impacto, picotando o
dinheiro em obras de pinguelas, acelerando a ruína da já precaríssima
infraestrutura nacional.
Mesmo que tivéssemos crescimento econômico
mais veloz, não será possível empregar parte da população, por causa do descaso
sempiterno com a educação; falta de escola e envelhecimento vão levantar o
assunto da imigração de mão-de-obra.
O crescimento ominoso da dívida pública pode
se transformar em crise súbita quando as taxas de juros voltarem a subir, por
inflação ou outra crise.
A destruição sem volta de Amazônia e Cerrado,
nas nossas fuças, ameaça maior de hecatombe, nos deixaria sem água,
eletricidade e agricultura.
Mantemos um monte de panelas de crise no
fogo. Um dia, o caldo entorna. Temos visto.
Cruzes!
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