terça-feira, 28 de maio de 2024

Arnaldo Lima - Vinculação do salário mínimo à Previdência é cláusula pétrea

Valor Econômico

Qualquer reforma fiscal que estabilize a dívida passa por aperfeiçoamentos contínuos da legislação previdenciária

É elogiável a disposição da ministra do Planejamento, Simone Tebet, em iniciar uma agenda de discussão sobre o aperfeiçoamento da qualidade do gasto público que reduza a rigidez orçamentária e impeça a trajetória explosiva do gasto obrigatório. Sem reformas estruturantes, qualquer regra fiscal que foque somente nas despesas discricionárias, como o teto dos gastos ou o arcabouço fiscal, terá efetividade limitada para se tornar uma âncora fiscal sustentável e permitir que tenhamos uma taxa de juros real compatível com o nosso desejo de nos tornarmos um país desenvolvido.

Porém, a ministra caiu em uma armadilha ao declarar que está estudando a desvinculação do piso previdenciário do salário mínimo, o que rememorou a célebre frase de H. L. Mencken: “Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”. Além de não ser nova, essa proposta teria sérias dificuldades para superar as resistências do próprio Poder Executivo, pois a grande maioria dos servidores da Advocacia Geral da União (AGU) e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) entende que a vinculação é cláusula pétrea, ou seja, é um direito constitucional que não pode ser alterado.

Em outras palavras, mesmo que prosperasse a edição de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) com a respectiva aprovação no Congresso Nacional, é muito alta a probabilidade do Supremo Tribunal Federal (STF) derrubá-la por várias razões.

Primeiramente, a corrente majoritária atualmente faz uma leitura mais extensiva da Constituição ao interpretar que as cláusulas pétreas não se restringem aos direitos e garantias individuais mencionados no inciso IV do § 4º do art. 60, mas também englobam alguns direitos sociais. Em breve resumo, o §2º do art. 201 da Carta Magna é considerado um direito individual ao determinar que nenhum benefício que substitua o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado tenha valor mensal inferior ao salário mínimo.

Nesse contexto, tanto o benefício previdenciário quanto o seguro-desemprego são considerados substitutivos da renda do trabalho e não podem ter valores menores do que o piso salarial. Contudo, a interpretação para alterar as regras de elegibilidade e valores dos benefícios do Benefício de Prestação Continuada (BPC) pode não ser tão restritiva assim, pois tal programa assistencial não tem qualquer vinculação com a renda do trabalho, da mesma forma que o Bolsa Família também não tem e cujo benefício sempre foi menor do que o salário mínimo.

Por sua vez, o art. 7º, inciso IV, garante aos trabalhadores urbanos e rurais o direito ao “salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”. Tal dispositivo constitucional, ao dizer que o trabalhador deve auferir renda suficiente para custear as suas despesas e de sua família, fomenta um debate apaixonado sobre a distinção entre renda mínima do trabalho e renda básica universal, que ainda está longe de ser pacificado no Judiciário e pode ser um grande risco fiscal, caso o debate não seja bem conduzido.

Se o salário mínimo estivesse acima do mínimo existencial, o cenário para o debate público poderia ser outro, o que levaria a uma discussão sobre análise econômica do direito, que está longe de ser a corrente majoritária do STF neste momento. É muito provável que, caso a PEC fosse judicializada, a discussão girasse em torno do cálculo do salário mínimo ideal para fazer frente às necessidades vitais do trabalhador e de sua família, que são mais amplas do que seu o gasto individual com alimentação.

Ou seja, em que pese 1 salário mínimo ter o valor equivalente a mais de 1,8 cesta básica, o piso necessário para custear todos os direitos elencados no art. 7º do trabalhador e de seus familiares deveria ser 4,9 vezes maior do que o atual, segundo o cálculo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Diesee).

Uma argumentação econômica importante sobre o impacto do salário mínimo na previdência é que aumentos reais referem-se a ganhos de produtividade do trabalho; portanto, não deveriam ser estendidos aos inativos. Essa lógica é interessante e traz enfoque sobre a separação do salário-base trabalhista e benefício-base previdenciário, sendo que, se nada for feito, implicará no pagamento de benefícios médios cada vez mais próximos do mínimo, o que já é uma realidade do INSS, haja vista que 64% das concessões de benefícios já são vinculadas a 1 salário mínimo.

Contudo, a réplica dessa lógica no Judiciário seria peremptória: se a questão fiscal e econômica são os principais argumentos, por que não rever a política de valorização do salário mínimo primeiro antes de propor uma mudança mais drástica? Como sempre digo, fazer o básico do debate público pode ser revolucionário.

Qualquer reforma fiscal que estabilize a dívida passa por aperfeiçoamentos contínuos da legislação previdenciária, sendo que o desafio de equilibrar as contas públicas é um desafio nacional e não apenas do governo federal. Enquanto a despesa do INSS foi de 8,3% do PIB em 2023, a despesa total da previdência alcançou 14,5% do PIB, quando se inclui servidores públicos civis e militares da União, dos Estados, do DF e dos municípios. Em resumo, o gasto nacional da previdência é equivalente ao gasto de países que têm uma população idosa cerca de 3 vezes maior do que a nossa, como Grécia, Portugal e França, por exemplo.

É imprescindível, portanto, que o Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (CMAP) do Ministério do Planejamento, em conjunto com o Ministério da Fazenda, proponha medidas de incentivos para que os entes subnacionais também aprovem reformas previdenciárias compatíveis com a aprovada pelo governo federal em 2019, assim como também avance em propostas para regulamentar a cobertura de benefícios não programados, inclusive os decorrentes de acidente do trabalho, a ser atendida concorrentemente pelo INSS e pelo setor privado, bem como medidas para aperfeiçoar o BPC e evitar a redução das alíquotas previdenciárias dos municípios. Não é uma agenda simples, mas para pensarmos grande, precisamos dar um passo de cada vez e evitarmos ruídos desnecessários que comprometam a construção de uma agenda estruturante.

 

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