Valor Econômico
Qualquer reforma fiscal que estabilize a
dívida passa por aperfeiçoamentos contínuos da legislação previdenciária
É elogiável a disposição da ministra do
Planejamento, Simone Tebet, em iniciar uma agenda de discussão sobre o
aperfeiçoamento da qualidade do gasto público que reduza a rigidez orçamentária
e impeça a trajetória explosiva do gasto obrigatório. Sem reformas
estruturantes, qualquer regra fiscal que foque somente nas despesas
discricionárias, como o teto dos gastos ou o arcabouço fiscal, terá efetividade
limitada para se tornar uma âncora fiscal sustentável e permitir que tenhamos
uma taxa de juros real compatível com o nosso desejo de nos tornarmos um país
desenvolvido.
Porém, a ministra caiu em uma armadilha ao declarar que está estudando a desvinculação do piso previdenciário do salário mínimo, o que rememorou a célebre frase de H. L. Mencken: “Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”. Além de não ser nova, essa proposta teria sérias dificuldades para superar as resistências do próprio Poder Executivo, pois a grande maioria dos servidores da Advocacia Geral da União (AGU) e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) entende que a vinculação é cláusula pétrea, ou seja, é um direito constitucional que não pode ser alterado.
Em outras palavras, mesmo que prosperasse a
edição de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) com a respectiva
aprovação no Congresso Nacional, é muito alta a probabilidade do Supremo
Tribunal Federal (STF) derrubá-la por várias razões.
Primeiramente, a corrente majoritária
atualmente faz uma leitura mais extensiva da Constituição ao interpretar que as
cláusulas pétreas não se restringem aos direitos e garantias individuais
mencionados no inciso IV do § 4º do art. 60, mas também englobam alguns
direitos sociais. Em breve resumo, o §2º do art. 201 da Carta Magna é
considerado um direito individual ao determinar que nenhum benefício que
substitua o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado
tenha valor mensal inferior ao salário mínimo.
Nesse contexto, tanto o benefício
previdenciário quanto o seguro-desemprego são considerados substitutivos da
renda do trabalho e não podem ter valores menores do que o piso salarial.
Contudo, a interpretação para alterar as regras de elegibilidade e valores dos
benefícios do Benefício de Prestação Continuada (BPC) pode não ser tão
restritiva assim, pois tal programa assistencial não tem qualquer vinculação
com a renda do trabalho, da mesma forma que o Bolsa Família também não tem e
cujo benefício sempre foi menor do que o salário mínimo.
Por sua vez, o art. 7º, inciso IV, garante
aos trabalhadores urbanos e rurais o direito ao “salário mínimo, fixado em lei,
nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e
às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário,
higiene, transporte e previdência social”. Tal dispositivo constitucional, ao
dizer que o trabalhador deve auferir renda suficiente para custear as suas
despesas e de sua família, fomenta um debate apaixonado sobre a distinção entre
renda mínima do trabalho e renda básica universal, que ainda está longe de ser
pacificado no Judiciário e pode ser um grande risco fiscal, caso o debate não
seja bem conduzido.
Se o salário mínimo estivesse acima do mínimo
existencial, o cenário para o debate público poderia ser outro, o que levaria a
uma discussão sobre análise econômica do direito, que está longe de ser a
corrente majoritária do STF neste momento. É muito provável que, caso a PEC
fosse judicializada, a discussão girasse em torno do cálculo do salário mínimo
ideal para fazer frente às necessidades vitais do trabalhador e de sua família,
que são mais amplas do que seu o gasto individual com alimentação.
Ou seja, em que pese 1 salário mínimo ter o
valor equivalente a mais de 1,8 cesta básica, o piso necessário para custear
todos os direitos elencados no art. 7º do trabalhador e de seus familiares
deveria ser 4,9 vezes maior do que o atual, segundo o cálculo do Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Diesee).
Uma argumentação econômica importante sobre o
impacto do salário mínimo na previdência é que aumentos reais referem-se a
ganhos de produtividade do trabalho; portanto, não deveriam ser estendidos aos
inativos. Essa lógica é interessante e traz enfoque sobre a separação do
salário-base trabalhista e benefício-base previdenciário, sendo que, se nada
for feito, implicará no pagamento de benefícios médios cada vez mais próximos
do mínimo, o que já é uma realidade do INSS, haja vista que 64% das concessões
de benefícios já são vinculadas a 1 salário mínimo.
Contudo, a réplica dessa lógica no Judiciário
seria peremptória: se a questão fiscal e econômica são os principais
argumentos, por que não rever a política de valorização do salário mínimo
primeiro antes de propor uma mudança mais drástica? Como sempre digo, fazer o
básico do debate público pode ser revolucionário.
Qualquer reforma fiscal que estabilize a
dívida passa por aperfeiçoamentos contínuos da legislação previdenciária, sendo
que o desafio de equilibrar as contas públicas é um desafio nacional e não
apenas do governo federal. Enquanto a despesa do INSS foi de 8,3% do PIB em
2023, a despesa total da previdência alcançou 14,5% do PIB, quando se inclui
servidores públicos civis e militares da União, dos Estados, do DF e dos
municípios. Em resumo, o gasto nacional da previdência é equivalente ao gasto
de países que têm uma população idosa cerca de 3 vezes maior do que a nossa,
como Grécia, Portugal e França, por exemplo.
É imprescindível, portanto, que o Conselho de
Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (CMAP) do Ministério do
Planejamento, em conjunto com o Ministério da Fazenda, proponha medidas de
incentivos para que os entes subnacionais também aprovem reformas
previdenciárias compatíveis com a aprovada pelo governo federal em 2019, assim
como também avance em propostas para regulamentar a cobertura de benefícios não
programados, inclusive os decorrentes de acidente do trabalho, a ser atendida
concorrentemente pelo INSS e pelo setor privado, bem como medidas para
aperfeiçoar o BPC e evitar a redução das alíquotas previdenciárias dos
municípios. Não é uma agenda simples, mas para pensarmos grande, precisamos dar
um passo de cada vez e evitarmos ruídos desnecessários que comprometam a
construção de uma agenda estruturante.
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