Valor Econômico
Livro de Pedro Fernando Nery desbrava as fronteiras da desigualdade brasileira
“Não faz diferença se você é preto ou branco,
se é menino ou menina”, cantou Madonna no palco em Copacabana, para delírio de
mais de um milhão e meio de pessoas. “Você é um superstar, sim, isso é o que
você é, você sabe disso”!
Lançada em 1990 e um dos maiores hits da carreira de Madonna, “Vogue” é uma celebração de um estilo de dança da cultura gay de Nova York nos anos oitenta, em que os artistas emulam poses e movimentos de modelos na passarela.
A mensagem é libertadora, e explica a energia
do público ao ouvir seus primeiros acordes. Na pista de dança, você é a
estrela, basta usar a sua imaginação e as portas se abrirão para a realização
de seus sonhos. Não importa quem você é, basta deixar o seu corpo mover
conforme a música.
No meio da canção, Madonna presta uma
homenagem a ídolos da fase clássica de Hollywood: Greta Garbo, Marilyn Monroe,
Marlene Dietrich, Marlon Brando, James Dean, Grace Kelly e por aí vai. Há um
detalhe, contudo: todos são brancos, numa contradição direta com a mensagem
principal da letra.
Tal qual na canção de Madonna, a maioria dos
autodeclarados liberais brasileiros acredita que não fazem diferença a cor da
pele, gênero ou origem. Para ser bem-sucedido, tudo é questão de criatividade,
trabalho e mérito.
No entanto, quando se visitam os escritórios
da Avenida Faria Lima, em São Paulo, ou se passeia pelas superquadras do Plano
Piloto de Brasília, a paisagem é dominada por uma população em sua maioria
branca.
A fórmula do sucesso para se galgar uma
posição de destaque na meca do capitalismo brasileiro ou na elite do
funcionalismo público federal combina a sorte de ser bem-nascido, acesso a bons
colégios e universidades e uma ótima rede de contatos. O mérito conta pouco
nessa equação.
Acaba de chegar às livrarias “Extremos: um
mapa para entender as desigualdades no Brasil”, de autoria do economista Pedro
Fernando Nery. Um dos mais brilhantes pesquisadores da nova geração, Nery tem a
rara capacidade de aliar formação teórica de qualidade, análise rigorosa de
dados e uma incrível habilidade de comunicação.
Ao se jogar no projeto de pesquisar a
desigualdade, Pedro Nery fez algo que poucos economistas se prestam a fazer.
Deixou de lado as planilhas de dados e se aventurou numa viagem de mais de
quinze mil quilômetros para visitar os extremos do país - não em termos
geográficos, mas localidades que representam onde se vive mais e melhor no
Brasil, e os lugares em que se leva a existência mais dura.
Espiando por entre muros as mansões do
Morumbi, em São Paulo, ou enfiando literalmente o pé na lama do rio Juruá para
visitar Ipixuna, no Amazonas, Pedro Nery parte do que viu e ouviu nos lugares
mais desenvolvidos e mais miseráveis para introduzir discussões não apenas
necessárias, como urgentes. Haja vista a tragédia diária da violência que
acomete o bairro de Mocambinho em Teresina (menor expectativa de vida do país)
ou a hecatombe climática que não poupou nem a desenvolvida e pacata Nova
Petrópolis, município gaúcho que tem o maior percentual de aposentados.
Assim como foi guiado pela desiludida
Thaynara, pela otimista Jenifer, por Vítor (um talento para códigos
computacionais) e pela simpática Magaly para conhecer uma realidade bastante
distante dos gabinetes que frequenta como consultor legislativo do Senado,
Pedro Nery orienta os leitores com avaliações bem fundamentadas sobre as
disparidades de renda, educação e saúde no Brasil.
O livro é farto de discussões sobre políticas
públicas, programas sociais, tributação, regulação e previdência, baseadas em
pesquisa empírica de ponta que vem sendo produzida no Brasil e no exterior.
Democrático, Nery ousa desafiar tanto totens sagrados defendidos por uma
direita mercadológica (como a isenção tributária a lucros e dividendos), como a
sacrossanta CLT endeusada por uma esquerda retrógrada.
A melhor parte, contudo, está nas sugestões
de reformas para atacar algumas das principais distorções que perpetuam a
absurda concentração de renda e o degradante contingente de miseráveis no país.
Ao longo dos oito capítulos do livro, Nery apresenta diversas soluções, algumas
delas já tramitando no Congresso, para aproximarmos os extremos que nos
afastam, tanto na configuração social quanto na polarização política.
Mais de 30 anos depois de “Vogue” dominar as
paradas, Beyoncé lançou um remix do single “Break my soul” com trechos da
música de Madonna, contando com a participação da própria. Na lista de
celebridades citadas, porém, a reparação foi feita, com menções a dezenas de
estrelas negras de primeira grandeza, como Nina Simone, Bessie Smith, Lauryn
Hill, Roberta Flack, Aretha Franklin, Whitney Houston e Rihanna.
Quem sabe, algum dia, depois de lerem o livro
de Nery, os autodeclarados liberais brasileiros (que geralmente não passam da
página 2 dos manuais do liberalismo) possam reconhecer que a meritocracia só
terá sentido no Brasil se houver, antes, uma menor desigualdade de
oportunidades.
Só assim encurtaremos as imensas distâncias (não apenas geográficas) que separam os extremos entre o paulistano bairro de Pinheiros a Severiano Melo, no Rio Grande do Norte.
Excelente! Parabéns ao colunista, e ao blog que divulga seu trabalho.
ResponderExcluirMuito bom mesmo!
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