terça-feira, 14 de maio de 2024

Carlos Melo* - O fio de Ariadne

O Globo

O Brasil tem sido impiedosamente castigado por seus erros. Um período de destruição econômica, política e institucional

Há semanas, Simone Tebet, ministra do Planejamento e Orçamento, proferiu palestra a alunos da graduação do Insper. Acompanhada de seus secretários, apresentou o projeto Rotas de Integração Sul-Americana e demonstrou a relevância de sua atuação no governo. São ações articuladas que buscam escoar, pelo Pacífico, a imensa produção de commodities do Brasil e dos países vizinhos.

Conectando rotas existentes em vários meios de transporte, o projeto diminui custos logísticos, atende a interesses econômicos do subcontinente e do mercado consumidor. Muitas obras estão prontas, outras dependem de detalhes. Em comparação ao passado, há pouco dinheiro público na parada. Desta vez, o BNDES não financiará países amigos.

Ultrapassada a fundamental reforma tributária, é um passo em direção à economia e ao mundo reais. Embora o foco seja a China, trata-se de profundo mergulho na nova divisão internacional do trabalho. A tradicional força do Ocidente tem sido abalada e está em via de superação pelo Oriente mais populoso, produtivo e economicamente exuberante.

O agronegócio é a força motriz — o que faz torcer narizes à esquerda. Questionada sobre a indústria, Tebet citou o incentivo a cadeias produtivas:

— O Brasil não pode continuar exportando grãos de café para importar café expresso — disse como exemplo.

O sentimento foi de raro otimismo. E perplexidade: por que o governo Lula não faz o barulho adequado e transforma projetos do tipo em bandeiras políticas? A resposta simplória mencionaria a disputa partidária como causa. Simone é do MDB, concorreu à Presidência da República contra Lula; a Comunicação Social do governo é comandada pelo PT. Claro, mesquinharias desse tipo sempre existirão.

Mas o fiasco do comício das centrais sindicais em comemoração ao “1º de Maio” revelou que o problema é de outra natureza, mais sério. O presidente da República se deslocou de Brasília ao estacionamento do estádio do Corinthians para falar a meras 1.600 almas. Criticando a organização do evento, Lula afirmou que o ato foi “mal convocado”. Embromação, a verdade é outra.

Ousando interpretar idiossincrasias, pode-se inferir que o presidente e parcela de seus companheiros resistem a admitir que o universo analógico, industrial e sindical em que foram forjados agoniza. Tentam se agarrar ao passado, como faz também a direita.

O reconhecimento da nova economia e o uso de suas ferramentas — Lula também sinaliza indisposição com o tema inteligência artificial — não podem esperar. Para além de clichês, deveriam se transformar no Projeto Nacional. Com poder até de reatar diálogos interrompidos pela ignorância e pela estupidez do extremismo.

Considerem-se a preservação ambiental, a inclusão social e a valorização do patrimônio imaterial do Brasil, de inestimável valor econômico, e é possível crer em saídas do labirinto em que o país se perdeu há mais de uma década. Pode-se dispensar o pessimismo para momentos melhores.

Antes constatação que crítica, o presidente é um homem de ontem, preso a modelos que se desmancharam no ar. Sua maior virtude é que o fantasma de Jair Bolsonaro e seus seguidores remontam às trevas da Idade Média. No mais, “bolsonarismo” e “moderado” são palavras que não cabem na mesma frase. Não ser Bolsonaro é o mínimo; operar a inevitável mudança sob o imperativo de trazê-la à luz com menos traumas, esta sim, é a tarefa histórica. “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.”

Há uma década no labirinto, o Brasil tem sido impiedosamente castigado por seus erros. Um período de destruição econômica, política e institucional. O Teseu que liquidará o Minotauro ainda não foi revelado ao mundo; a crise de liderança política é gigante. Mas não custa sonhar que projetos como o apresentado por Tebet sejam uma espécie de fio de Ariadne.

*Carlos Melo é cientista político e professor sênior do Insper

 

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