sábado, 4 de maio de 2024

Eduardo Affonso - Lady Madonna

O Globo

Na contramão do identitarismo, a cantora não vitimizou mulheres, pretos, gays, latinos. Preferiu celebrá-los

Deve ter havido algum fenômeno paranormal entre junho e agosto de 1958. No intervalo de menos de três meses, nasceram Prince, Madonna e Michael Jackson. É difícil que pelo menos um deles não esteja na trilha sonora da vida de qualquer sessentão.

Prince mudou de nome, Michael mudou de cor, e a material girl se tornou mãe de seis filhos (quatro adotados na África). Em algum momento, nesses 65 anos, o Brasil esteve no meio de seu caminho.

Prince abriu show de Alceu Valença no Maracanã (era o Rock in Rio, e ele preferiu não ser a última atração da noite). Cantou que nada se comparava a nós. Michael subiu o Morro Dona Marta (onde há uma estátua horrenda, em homenagem) e desceu o Pelourinho com o Olodum, cantando que eles não ligam para nós. A única sobrevivente da trinca estará hoje, no Rio, diante de 1,5 milhão de pessoas, mostrando que não liga para o peso de 40 anos de carreira — e que poucos artistas se comparam a ela.

Madonna fez uma checklist de tabus e os foi quebrando, um a um. Misturou (com gosto) sexo e religião. Transformou o crucifixo em acessório de moda (dizia gostar do símbolo cristão por causa do homem nu que havia nele) e comprou briga com ninguém menos que João Paulo II e Bento XVI. Talvez tenha sido a mais completa tradução do “sexy sem ser vulgar”, talvez tenha elevado a vulgaridade ao status de arte — vá saber.

Em 1990, Camille Paglia escreveu sobre “Justify my love”: “O vídeo é pornográfico. É decadente. E é fabuloso”. A mesma Camille, 25 anos depois, acusou Madonna de se objetificar, ao expor o corpo já não tão jovem, e de fazer o feminismo retroceder. Madonna respondeu:

— Sou outro tipo de feminista. Uma feminista má.

Tinha então 58 anos, e ironizou:

— Não envelheça, porque envelhecer é um pecado.

A feminista do sutiã petulantemente pontiagudo e as que queimavam (literal ou metaforicamente) sutiãs por considerá-los símbolos de opressão nunca foram o melhor exemplo de sororidade. Na contramão do identitarismo, tampouco vitimizou mulheres, pretos, gays, latinos. Preferiu celebrá-los.

Madonna fez outras escolhas arriscadas. Envelhecer (esse pecado!) foi uma delas. Janis, Hendrix, Amy, Elvis — e também Prince e Michael Jackson — sucumbiram às drogas e não tiveram tempo de se tornar irrelevantes ou de ter de se reinventar década após década. Madonna encaretou e chegou — influente e em forma — à terceira idade.

Paul McCartney (outro que optou pela longevidade e levou a coisa a sério) compôs em 1968 uma canção que fala de uma mãe solo, matando um leão por dia para sobreviver. Para ela, as manhãs de domingo rastejavam e as tardes de terça não acabavam nunca; na quinta havia que remendar as meias; e a sexta-feira chegava como se não fosse para ficar. A canção se chama “Lady Madonna” e não menciona o sábado. Talvez no sábado essa mulher, que mantém tudo a sua volta funcionando, pudesse, enfim, descansar.

Quem se arriscar a ir hoje às areias de Copacabana para o show da incansável Madonna deve estar preparado tanto para terminar na delegacia fazendo B.O. de roubo do celular quanto para contar às gerações futuras:

— Meninos, eu vi.

— É a mulher mais importante do século passado e, se duvidar, deste século vai ser também — disse a exagerada fã Fernanda Young.

Pode não ser isso, mas é quase.

 

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