Por Fabio Murakawa / Valor Econômico
Para sociólogo, ante a atual fragmentação
partidária, nenhum governo conseguirá formar uma maioria “minimamente coesa”
para apoiá-lo
Sociólogo, cientista político pós-doutorado
pela Universidade Cornell, nos EUA, foi Sérgio Abranches que, em 1988, cunhou o
termo “presidencialismo de coalizão” para definir o modelo político que se
desenhava na recém-nascida democracia do Brasil.
À época em que escreveu o artigo, o país
escrevia a Constituição que vigora até hoje. Abranches percebeu, na composição
da Assembleia Constituinte, três características que tornavam o modelo
brasileiro diferente do de qualquer outro país do mundo: “Além de combinar a
proporcionalidade, o multipartidarismo e o ‘presidencialismo imperial’,
organiza o Executivo com base em grandes coalizões”.
“A esse traço peculiar da institucionalidade
concreta brasileira chamarei, à falta de melhor nome, ‘presidencialismo de
coalizão’”, escreveu à época.
Mais de 35 anos depois, esse modelo está sob
questão, sobretudo com o controle cada vez maior do Orçamento público pelo
Congresso. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já chegou a defender a
criação de um sistema “semipresidencialilsta”, para abandonar o atual modelo.
Nesta entrevista ao Valor, Abranches diz
que o presidencialismo de coalizão vive uma crise, à medida que, ante a atual
fragmentação partidária, nenhum governo conseguirá formar uma maioria
“minimamente coesa” para apoiá-lo.
Eu me arriscaria a dizer que 90% dos
deputados brasileiros não sobreviveriam ao parlamentarismo”
Para Abranches, o modelo está no “pior dos
mundos”, em que os parlamentares alocam uma parcela substancial do Orçamento”,
via emendas, sem o ônus de serem responsabilizados pelos eventuais fracassos
das políticas públicas.
A seguir os principais trechos:
Valor: O presidencialismo de coalizão
acabou?
Sérgio Abranches: O presidencialismo de
coalizão só acaba quando for mudado o regime constitucional. O que pode
acontecer com ele é ser transformado internamente, ou desfigurado, ou se tornar
mais instável, em crise. Hoje, o que nós temos é uma crise do presidencialismo
de coalizão, no sentido de que não tem condições na atual configuração
partidária da Câmara dos Deputados, em particular, para formar uma coalizão
majoritária minimamente coesa para apoiar o governo. Isso se reflete em uma
maior dificuldade do governo para aprovar os projetos. Então, ele já faz uma
autofiltragem daquilo que é mais prioritário e que tem mais chance de negociar
com o Congresso.
Valor: No caso do governo do PT, as
pautas identitárias, que não passam de jeito nenhum...
Abranches: Não é só na área identitária.
A “saidinha” envolve uma percepção social da questão da segurança. Mesmo em
questões fundamentais, como Educação e Saúde, o governo tem dificuldade hoje. A
gente reclamava muito sempre que partidos brasileiros não têm nenhuma visão
programática, mas eles tinham pelo menos alguns compromissos políticos, uma
certa preocupação com o nacional e de âmbito estadual. Hoje a visão dominante
no Congresso é municipalista, é o reduto eleitoral do deputado e não muito mais
do que isso. Tanto que o Arthur Lira chama o novo sistema orçamentário de
“municipalista”.
Valor: Com essa fragmentação partidária
no Congresso, é diferente ser presidente hoje do que era em décadas anteriores?
Abranches: O FHC [Fernando Henrique
Cardoso] tinha maioria com dois partidos, PSDB e PFL. Com o PMDB, que se uniu a
eles, com três partidos ele tinha 70% dos votos, era tranquilo. Tinha muito
pouca divergência, se a gente pensar bem, entre PSDB, PFL e PMDB. Eram partidos
contíguos do ponto de vista político e ideológico. O Lula [entre 2003 e 2010]
conseguia fazer maioria com seis partidos: os partidos da esquerda mais o PMDB.
A Dilma, quando se defendeu do impeachment, fez essa comparação. Ela disse: “Eu
precisava de 17 partidos para fazer a maioria, então era ingovernável”. Ela
tinha razão. Com o domínio do Centrão, você tem uma política exclusivamente do
“toma-lá-dá-cá”. E mais a influência da extrema-direita e dos evangélicos. Isso
aí dá uma mistura que torna qualquer possibilidade de um programa governamental
negociado com o Congresso difícil. Houve, de fato, uma deterioração progressiva
do presidencialismo brasileiro.
As condições pelas quais foi possível o
Bolsonaro articular o golpe não sumiram. Foi um golpe inacabado”
Valor: O Brasil está rumando para um
parlamentarismo?
Abranches: Eu me arriscaria a dizer que
90% dos deputados brasileiros não sobreviveriam ao parlamentarismo. O nosso
problema hoje é que a gente está no pior dos mundos. Quer dizer, eles
[deputados] alocam uma parcela substancial do Orçamento sem responsabilidade
perante o eleitor, a não ser o seu eleitor específico lá, do seu reduto, quando
no parlamentarismo isso produziria claramente uma quebra da confiança. E, nas
eleições parlamentares, certamente haveria uma varrida desses deputados que não
têm um mínimo de visão nacional. Essa ação irresponsável, no sentido de que não
tem custo para as injustiças que cometem, isso aí é insustentável em um regime
de tipo parlamentar. Porque o resultado é o aumento da desigualdade. Isso dá um
resultado nacional negativo. E esse resultado negativo nacional derrubaria o
Parlamento.
Valor: Aonde a crise do presidencialismo
de coalizão desaguará?
Abranches: Ela pode produzir uma baita
crise econômico-social em algum momento, ou pode produzir uma reação da
sociedade que se traduza em um novo padrão de voto também. Até agora, ela tem
produzido um padrão de voto niilista, quer dizer, antipolítica, antidemocracia,
a favor de qualquer aventureiro que seja capaz de dizer três ou quatro ofensas
mais agudas ao sistema, como aconteceu com [Jair] Bolsonaro.
Valor: Como Lula está se saindo à frente
de um Executivo enfraquecido ante um Congresso tão forte?
Abranches: Eu imagino que o Lula de vez
em quando deva ficar surpreso com o que está acontecendo, porque para ele é uma
situação muito diferente. O Lula governou durante dois mandatos com muita
popularidade e muito apoio social, portanto, uma enorme força sobre o
Congresso. E de repente ele se vê com baixa popularidade, sem capacidade de
manejar no Congresso, com um novo padrão de negociação com o qual ele não está
acostumado, e questões com as quais não tem nenhuma afinidade.
Valor: Que questões?
Abranches: A gente vê as contradições,
por exemplo, do Lula na questão ambiental. Ele tem a antena que permite
perceber que essa é uma questão global fundamental, mas quando olha para dentro
do país, ela bate na sua concepção superada de desenvolvimento. E ele fala:
“Mas eu não posso sacrificar a Petrobras, eu tenho que fazer mais petróleo”,
“Eu tenho que atender a indústria automobilística velha, não posso ficar
pensando só no carro elétrico”. Essas contradições mostram um descompasso entre
a visão dele e a percepção que ele tem de que tem questões novas que precisam
ser enfrentadas pelo governo. Eu acho que é um governo mais contraditório,
menos bem definido, política e programaticamente, do que foram os outros
governos do Lula. E com muito mais dificuldade política.
Valor: O Arthur Lira, nesse processo, é
uma figura do seu tempo?
Abranches: O Arthur Lira expressa
exatamente essa nova correlação de forças. Ele nasce do Centrão do Congresso,
ele faz parte da política oligárquica brasileira, e assume a presidência da
Câmara num momento em que tem um presidente muito fraco, incapaz de lidar com o
processo político, e que abdica disso para o Congresso, que foi o Bolsonaro -
aquele poder enorme com um Orçamento Secreto, que ele [Lira] chama de
municipalista. E com isso ele consegue um grau de poder para além dos recursos
de poder que o presidente da Câmara tradicionalmente tem, que são muitos. Ele
consegue centralizar as decisões, ele consegue definir, junto com um pequeno
grupo do colégio de líderes. O maior poder de agenda hoje no Brasil é o do
Arthur Lira.
Valor: Todo esse poder tende a derivar
para o sucessor do Lira?
Abranches: Eu acho que é difícil o mesmo
poder de controle de agenda que o Lira tem, porque na verdade ele nasceu de uma
circunstância ainda mais favorável, que era quando tinha Orçamento Secreto. Ao
mesmo tempo, conseguiu uma relação de confiança com os parlamentares que o
elegeram, que dá a ele muita autoridade. Eu não vejo entre os candidatos
ninguém com esse perfil. Por outro lado, não há possibilidade efetiva, ali no
chão do plenário, de reverter recursos para o Executivo. Eu diria que talvez dê
mais jogo, mas pode ser também que fique mais desorganizado o processo. Um
presidente com menos pulso, com essa menor capacidade de controle de agenda,
pode, na verdade, fazer com que haja mais paralisia no processo legislativo.
Valor: Como o resultado das eleições
municipais pode se refletir no humor em Brasília?
Abranches: A eleição tem o efeito que
resulta da interpretação do resultado. Se as manchetes dos jornais forem “PT
derrota bolsonarismo”, isso tem um efeito político sobre aqueles que tendem a
buscar o poder, de alinhar-se ao governo. Se for o contrário, a atração muda de
lado. Se ficar claro que o governo ganhou as eleições, e o que vai definir isso
vai ser evidentemente a disputa em São Paulo e em algumas capitais visíveis,
isso pode ter um efeito positivo na popularidade do Lula, que por sua vez
rebate nas relações com o Congresso.
Valor: O que o 8 de Janeiro diz sobre a
nossa democracia?
Abranches: Eu acabei de entregar à editora um livro no qual eu faço uma detalhada análise do 8 de Janeiro, e eu chamei de “Golpe Inacabado”. Não um golpe frustrado ou fracassado, mas inacabado. Primeiro, porque as condições pelas quais foi possível o Bolsonaro articular o golpe não desapareceram. A gente ainda tem o mesmo estatuto legal para a convocação das forças militares. A gente continua não tendo mecanismos adequados de responsabilização do presidente pelos seus atos que não sejam impeachment, o que é um problema. Nós não temos também uma lei moderna contemporânea adequada de impeachment, a nossa legislação é de 1950, com duas jurisprudências diferentes, a da época do Collor e a da época da Dilma. E a segunda razão pela qual eu considero um golpe inacabado é porque os articuladores, os líderes e os financiadores do golpe não foram punidos ainda. Enquanto não houver a punição adequada, a gente continua tendo um problema democrático não resolvido.
Exatamente!
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