Correio Braziliense
O governo pode ter uma agenda social liberal
exequível, desde que calibrada de acordo com a correlação de forças no
Congresso e com apoio dos principais agentes econômicos
As sucessivas derrotas do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva no Congresso, principalmente em relação a vetos como os
das desonerações tributárias das folhas de pagamento e das “saidinhas” de
presos, têm repercussão no mundo político e desgastam o governo na opinião
pública, num momento em que quase todos os indicadores econômicos estão
melhorando — entre os quais os do emprego formal e da renda. Há um descolamento
da sociedade.
Em parte, essas derrotas refletem um movimento de cerco da oposição e busca de alternativas ao seu governo por parte dos adversários de sempre e de aliados contingenciais. Suas motivações ideológicas e interesses econômicos são hegemônicos no Congresso, mas não controlam o Poder Executivo. Existe, ainda, a falta de sintonia de Lula com a sua base parlamentar ampliada, que não pode ser atribuída exclusivamente aos seus articuladores políticos. Lula se movimenta de forma errática, não tem uma estratégia clara.
Diante desse cenário, onde é que o governo
Lula pode avançar, precisa recuar e/ou já perdeu irremediavelmente? No primeiro
grupo, estão as políticas sociais, principalmente saúde, educação e habitação,
que contam com recursos garantidos no Orçamento da União. Esse avanço pode se
dar por meio de ganhos de qualidade das políticas públicas e eficiência nos
serviços, além da escolha de prioridades e combate aos desperdícios. De certa
maneira, parte da tensão existente entre o governo e o Centrão resulta do fato
de que o governo tem efetivo controle sobre os recursos dessas áreas, que são
compartilhadas com estados e municípios.
Lula será forçado, por sucessivas derrotas, a
recuar em relação à agenda econômica desenvolvimentista. Essa é a razão de o
governo perder apoio nas elites do país, que agora se fazem representar muito
mais pelo Centrão do que por seus ministros da área econômica. O governo pode
ter uma agenda social liberal exequível, desde que calibrada de acordo com a
correlação de forças no Congresso e com apoio dos principais agentes
econômicos.
Entretanto, toda vez que avança em direção à
agenda nacional-desenvolvimentista, enfrenta grande reação do mercado, com
exceção dos que são diretamente beneficiados pelas medidas protecionistas que
caracterizam essa agenda. O caso mais evidente é o da Petrobras. Ao exagerar na
intervenção na economia, Lula leva água para o moinho da oposição. Teria mais
sucesso se apostasse na direção da economia verde, ou seja, no rumo da
transição energética, da bioeconomia e da agroindústria, que contam com amplo
apoio da opinião pública e de investidores estrangeiros.
Pragmatismo
A pauta dos costumes e da segurança pública é
uma agenda a ser evitada, congelada ou mitigada pelo governo, sempre que
depender do Legislativo. No caso dos costumes, a maioria conservadora do
Congresso retira do isolamento a bancada bolsonarista, tão minoritária quanto a
de esquerda.
Na questão da segurança pública, o senso
comum da maioria da população é de que a criminalidade precisa ser combatida
com o endurecimento das penas e a violência policial. Isso cria o caldo de
cultura para que a “bancada da bala” viabilize seus projetos reacionários no
Congresso. Qualquer mudança, na atual conjuntura, tende a ser para pior, como
no caso da “saidinha” e da venda de armas. A violência e a criminalidade são
problemas complexos, a segurança pública é mesmo uma prioridade nacional. Não
tem como o governo federal ficar fora disso.
Uma das dificuldades do governo com o
Congresso é que a escolha de seus ministros se deu em razão das alianças
eleitorais de 2022, que não correspondem exatamente à real correlação de forças
no Parlamento. A frente política que levou Lula ao segundo turno elegeu em
torno de 130 deputados, num universo de 513. Sem o apoio do Centrão, não
haveria governabilidade.
Ocorre que Lula fez uma campanha com dois
eixos: a memória de seus governos anteriores e a defesa da democracia. Não
construiu um programa comum com as forças que o apoiaram no segundo turno, nem
com aqueles que decidiram apoiar o governo depois da eleição. Sem agenda comum,
falta compromisso político dos aliados com os objetivos do governo. Essa
situação cobra o preço agora porque leva ao pragmatismo e ao comportamento na
base do ensaio e erro — ou seja, do “se colar, colou”.
Além disso, o contexto da relação
Executivo-Legislativo é outro. O sociólogo e professor espanhol Manuel Castells
destaca a ruptura da relação entre governantes e governados como um fator de
colapso da democracia liberal. Isso ocorre quando os partidos, em particular os
parlamentares, deixam de representar os eleitores para defender os próprios
interesses. O fenômeno é caracterizado pela formação de uma “partidocracia”.
No caso brasileiro, a “partidocracia” está em
formação graças ao bilionário financiamento público de campanha e às emendas
impositivas ao Orçamento, mais bilionárias ainda, sem a necessária
responsabilidade dos partidos com o êxito das políticas públicas. O Congresso
nunca teve tanto poder sobre o Orçamento da União, nem tanta falta de
compromisso com a qualidade e a eficiência das políticas públicas. É um
semi-presidencialismo irresponsável e informal.
O termo “partidocracia” é um neologismo usado
para descrever o fenômeno pelo qual os órgãos de governo se tornam meros
executores das decisões tomadas na esfera dos partidos, sem qualquer mediação
com a sociedade.
Pois é.
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