O Estado de S. Paulo
No novo mundo digital, proteger o emprego é um compromisso com a coesão social. A questão da desoneração é a ponta do iceberg. É melhor enfrentar a realidade que ela mostra
Há mais de dez anos a economia brasileira
convive com uma autêntica batalha entre o governo e os setores econômicos que
têm expressivo peso da força de trabalho em seus custos. O motivo poderia
parecer até banal: empresários querem pagar menos tributos contra a sanha
arrecadadora da burocracia pública.
Mas a questão é muito mais complexa do que parece. O conflito em torno da desoneração da folha – que substitui, desde 2012, a contribuição previdenciária sobre a folha de pagamento de 17 setores por um porcentual do faturamento – vai muito além das posições no Congresso Nacional e da recente incursão no Supremo Tribunal Federal (STF).
Para compreender o problema, temos de
adicionar outros contendores: o financiamento da Previdência Social e o déficit
público são os mais evidentes. Ater-se apenas a estes dois aspectos, no
entanto, impede que a dimensão econômica do problema seja compreendida, qual
seja o contraste entre duas economias completamente distintas, a dos anos 70 e
a da terceira década do século 21.
Inicialmente, vale a pena recuperar a correta
montagem da Previdência Social brasileira. Num regime de caixa em que as
contribuições do trabalhador ativo suprem os recursos para pagamento de
aposentadorias dos inativos e de seus pensionistas, a contribuição
previdenciária de empregados e empregadores era de mais ou menos um terço para
os primeiros e dois terços para as empresas. A base de cálculo era o salário,
no desconto na fonte do salário do trabalhador, e, no caso das empresas, a
folha salarial global.
Pontue-se aqui que a economia brasileira era
muito fechada ao comércio exterior, inclusive com barreiras às importações de
diversos produtos, o que viabilizava que o custo das elevadas contribuições de
previdência fosse repassado aos preços de bens e serviços. No caso das
exportações, custos mais altos com contribuição sobre folha podiam ser
compensados com uma taxa de câmbio mais favorável, ou seja, desvalorizada.
Tanto o Brasil quanto a economia mundial
mudaram muito nestes últimos 50 anos. Dois movimentos ocorreram nas receitas e
despesas públicas. De um lado, a Previdência Social foi se transformando num
sistema de seguridade, abandonando a vinculação estrita entre contribuição e
benefício para garantir uma renda de um salário mínimo a todo aposentado e
pensionista. Justo, mas, como salário saltou para um novo patamar em termos de
poder de compra, o sistema ficou muito mais caro.
De outro lado, custos maiores levaram à
ampliação dos encargos previdenciários na busca de financiamento. O maior
exemplo, a extinção do teto do salário de contribuição no cálculo da
participação do empregador sobre sua folha salarial.
As mudanças mais importantes ocorreram, no
entanto, na economia. O Brasil de hoje tem muito menos barreiras comerciais e
os produtores nacionais concorrem com produtos de países onde as empresas
enfrentam encargos sociais baixos. Ou seja, para as empresas, a luta ficou mais
difícil no mercado interno e ganhou contornos de inviabilidade na concorrência
em mercados externos. Diversos negócios intensivos em mão de obra, como a
indústria de calçados, simplesmente migraram suas plantas para produzir no
exterior.
As mudanças neste século, entretanto, são
ainda mais profundas com a automação da indústria e a economia digital. Há uma
grande tendência em trocar pessoas por máquinas, seja por uma questão de
produtividade, seja pelo controle de qualidade na produção de bens e serviços.
E esta tendência de automação fica exacerbada na presença de altos custos sobre
os salários. Logicamente, é muito atrativo trocar um trabalhador e seus custos
trabalhistas e encargos por uma máquina. Mais: parte do custo da máquina será
recuperada na forma de desoneração tributária do investimento.
É preciso compreender que as empresas de
todos os setores econômicos tinham alta participação do salário em seus custos,
o que gerava uma distribuição abrangente do ônus de financiar a Previdência
Social. O mundo de hoje não é assim, diversos setores têm compromissos
salariais reduzidíssimos diante do seu faturamento. Há empresas que não têm
intervenção humana em suas plantas produtivas. Manter a lógica de financiamento
antiga apenas transfere aos setores que ainda empregam de maneira expressiva um
ônus que apenas produz seu definhamento.
O esgotamento do padrão de financiamento da
Previdência já é visível nas suas contas, pois uma parcela importante dos seus
recursos vem do Tesouro para cobrir o “rombo”. Na verdade, vem da tributação de
bens e serviços, pelo PIS/Cofins, e do lucro, pelo Imposto de Renda Pessoa
Jurídica (IRPF) e pela Contribuição Sobre o Lucro Líquido (CSLL).
Neste novo mundo digital, proteger o emprego
é um compromisso com a coesão social. O conflito da desoneração é uma contenda
por recursos fadada ao costumeiro toma lá, dá cá. Mas ela é a ponta do iceberg.
Seria melhor enfrentar a realidade que ela mostra.
Excelente análise, muito informativa!
ResponderExcluirO ETERNO BLABLABLÁ DO SERRA...
ResponderExcluirPARECE ATÉ UMA ZEINA LATIF CARECA.
MAS O QUE NUNCA É DITO É QUANTO OS EMPRESÁRIOS, QUE TÊM LUCRO, DEIXAM DE PAGAR O QUE DEVIAM, E O QUANTO NÓS, POVO, QUE NO MÁXIMO TEMOS SALÁRIOS (QUANDO TEMOS), ESTAMOS PAGANDO NO LUGAR ESTES EMPRESÁRIOS QUE DEIXAM DE PAGAR O QUE DEVEM. AFINAL, SOMOS NÓS QUE SEMPRE PAGAMOS AS CONTAS...