CartaCapital
Será que não há um pouco de precipitação nas
conclusões irrefutáveis dos economistas sobre seus modelos?
Na edição de 29 de abril, em sua Página de
Rosto (assim falavam os da antiga), o Estadão estampou a manchete:
“Piora fiscal e cenário externo põem em xeque previsão de taxa de juros com um
dígito”.
Essa advertência foi precedida, e segue
acompanhada, por incisivos editoriais que fincam o pé na condenação dos gastos
do governo, apresentados como a origem dos males que afligem a economia
brasileira.
Em contundente editorial, a Folha de S.Paulo proclama: “Economia oscila entre o medíocre e o arriscado. Relaxamento de meta fiscal confirma recusa de Lula em rever gastos, o que limita expansão do PIB e torna País vulnerável. O afrouxamento precoce das metas para os resultados das contas do Tesouro Nacional não surpreendeu ninguém. Na verdade, nem mesmo se acredita que as novas metas serão cumpridas”.
A recente desvalorização do real ante o dólar
também recebeu inquinações de irresponsabilidade fiscal. Ao constatar a
valorização do dólar em relação a todas as moedas do planeta – aí incluídos o
euro, a libra, o yen e o yuan chinês –, um amigo indagou sarcasticamente se o
mundo não estaria diante de um perigosíssimo surto de Irresponsabilidade Fiscal
Universal. Ao afligir todas as economias do globo, disse ele, essa febre de
gasto imoderado e de endividamento público imprudente ameaça destroçar os pilares
de sustentação das economias de mercado capitalistas.
Há razões para se suspeitar de que a economia
global não vai bem das pernas. No entanto, seria precipitado atribuir suas
mazelas aos vícios globais de irrefreável descontrole de gastos e de
endividamento dos governos urbe et orbi.
Em uma carta endereçada aos assessores de
Roosevelt, Keynes desfiou argumentos a respeito das relações entre gasto e
formação da renda da sociedade.
“Nós produzimos a fim de vender. Em outras
palavras, nós produzimos em resposta aos gastos. É impossível supor que
possamos estimular a produção e o emprego, abstendo-se de gastar. Então, como
eu disse, a resposta é óbvia.
“Mas, em um segundo olhar, vejo que a questão
tem sido encaminhada para inspirar uma dúvida insidiosa. Para muitos, gasto
significa extravagância. Um homem que é extravagante logo se torna pobre. Como,
então, uma nação pode tornar-se rica, fazendo o que empobrece um indivíduo?
Esse pensamento desnorteia o público.
“No entanto, um comportamento que pode fazer
um único indivíduo pobre, pode fazer uma nação rica. Quando um indivíduo gasta,
ele não afeta só a si mesmo, mas a outros. A despesa é uma transação bilateral.
Se eu gastar minha renda para comprar algo que você pode fazer para mim, eu não
aumentei minha própria renda, mas aumentei a sua.”
Não espanta que, diante de tais apreensões e
sobressaltos, a conservadora revista britânica The Economist tenha se
abalançado a lançar precauções. Mas para a tradicional magazine da Pérfida
Albion, as ameaças não pareciam decorrer das incontinências fiscais
universais, senão da recente valorização da moeda norte-americana:
“O dólar está numa fase exuberante. Como o
crescimento americano se manteve forte e os investidores reduziram as apostas
de que o Federal Reserve (Fed, o Banco Central americano) cortará as taxas de
juro, o dinheiro inundou os mercados do país – e o dólar disparou. Subiu 4%
este ano, medido em relação a uma cesta de moedas; e os fundamentos apontam
para uma valorização ainda maior. Com uma eleição presidencial se aproximando e
tanto os democratas quanto os republicanos determinados a promover a indústria
americana, o mundo está à beira de um novo período de geopolítica de dólar
forte.
“Essa situação se torna ainda mais difícil
pelo fato de que a força da moeda reflete a fraqueza em outros lugares. No fim
de 2023, a economia dos Estados Unidos era 8% maior do que no fim de 2019. As
economias da Grã-Bretanha, França, Alemanha e Japão cresceram menos de 2% cada
uma durante o mesmo período. O iene está em uma baixa de 34 anos em relação ao
dólar. O euro caiu de 1,10 dólar no início do ano para 1,07 dólar. Alguns
traders agora estão apostando que a paridade entre euro e dólar será atingida
no início do próximo ano.
“Se Donald Trump vencer as eleições em novembro, o cenário estará pronto para uma briga. Um dólar forte tende a aumentar o preço das exportações americanas e diminuir o preço das importações, ampliando o persistente déficit comercial do país – um problema para Trump há muitas décadas.”
A citação é um tanto longa, mas necessária
para sublinhar os riscos que afligem as economias do planeta diante do poder do
dólar. A despeito das certeiras considerações da The Economist, em entrevista
concedida ao jornalista Fernando Canzian, da circunspecta Folha de S.Paulo,
Nouriel Roubini advertiu:
… “Como você apontou, o lado fiscal ainda não
está sob controle. O Banco Central se
saiu bem ao elevar as taxas cedo para combater a inflação, mas mais pressão
sobre a moeda não será algo positivo. Definitivamente, um cenário global mais
difícil implica que o Brasil tem de fazer mais ajustes macroeconômicos,
especialmente no lado fiscal, para enfrentar ventos contrários”.
Seguramente, os riscos são ainda mais graves
para os países que não frequentam os acarpetados ambientes das moedas
conversíveis, como o euro, a libra e o yen japonês.
Mas o nheco-nheco fiscalista não refreia seus
balbucios, mesmo diante das cifras parrudas do déficit fiscal e do
endividamento público do emissor da moeda-reserva, também conhecido como
Estados Unidos da América. O FMI informa: o déficit primário do vovô Biden está
em 4,9% e o endividamento público, em 123,3% do PIB.
Diante de tais resultados, talvez pudesse
ocorrer a um espírito de porco – sempre travestido com sua camiseta verde com
um P no escudo ostentado no peito – indagar dos colegas e amigos economistas se
não há alguma precipitação em suas conclusões definitivas e “irrefutáveis a
respeito das relações que determinam os movimentos das variáveis em seus
modelos de “Macroeconomia Aberta”?
Não se trata de desconfiança, mas apenas de
uma pergunta, talvez ingênua.
*Publicado na edição n° 1309 de CartaCapital, em 08 de maio de 2024.
Pois é.
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