O Estado de S. Paulo
O obscurantismo prevalece para alimentar o discurso de palanque visando a contentar a população crédula em soluções fáceis
A guerra contra as drogas foi declarada por
Richard Nixon em 1971 e reiterada pelos governos que o sucederam. A ONU, por
influência norte-americana, editou a Convenção de Viena de 1988, na qual se
consagrou a war on drugs, com exigência de punições graves aos usuários.
Nessa época, eu presidia o Conselho Federal de Entorpecentes, contando com conselheiros do nível de Elisaldo Carlini, Sérgio Paula Ramos e Miguel Jorge. O conselho, ao qual então cabia editar a lista de substâncias estupefacientes, decidiu não incluir como entorpecente o chá do Santo Daime, ou ayahuasca, pois, malgrado fosse um alucinógeno, seu uso era limitado e ligado à prática religiosa. A incriminação apenas criaria o comércio clandestino e a tentação do proibido. Estávamos certos. O uso do chá cumpre, até hoje, seu ritual espiritual, de forma restrita.
Quando tramitava no Senado o Projeto de Lei
da Câmara n.º 105, em 1999, fui indicado pelo então secretário nacional
antidrogas, Wálter Maierovitch, para presidir comissão visando à formulação de
projeto substitutivo ao então em apreciação. Essa comissão era composta por
especialistas de diversos setores. Nesse projeto, descriminalizava-se o porte
de droga para uso próprio, tipificado apenas como mera infração administrativa,
sujeito o autor a medidas educativas: encaminhamento aos pais ou responsável; comparecimento
pelo prazo máximo de um ano a programa de reeducação, curso ou atendimento
psicológico; orientação e apoio temporário por assistente social; participação
em programas comunitários; prestação pecuniária (veja meu artigo Quebrando o
tabu, Estadão de 2/7/2011). Possivelmente, influência norte-americana levou a
Presidência da República a desistir da apresentação do substitutivo.
Na Europa, países descriminalizavam o porte
de entorpecente, como ocorreu na Itália, Alemanha, Espanha e Portugal. Em 2004,
jovens mestres e doutores de nossa Faculdade de Direito da USP, hoje
professores e advogados ilustres (Alberto Toron, Antônio Sérgio Pitombo,
Fernando José da Costa, Helena Lobo da Costa, Leonardo Sica, Mariângela
Magalhães Gomes, Pierpaolo Bottini, Renato Silveira, Rogério Taffarello,
demonstraram, em seminário, que a war on drugs era uma causa perdida, pois
jamais haveria um mundo sem drogas.
É fato inconteste que a criminalização do
porte para uso próprio apenas alimenta o comércio clandestino e tisna como
delinquente o jovem, especialmente a clientela preferencial da polícia, os
pobres e negros. Assim, é medida de cunho social e de respeito à privacidade e
à liberdade de decisão sobre a própria existência que se repute
inconstitucional a criminalização do trazer entorpecente para seu uso. Os
jovens flagrados com porção de tóxico não devem ser jogados na lista dos
criminosos, com comprometimento de sua biografia, a serem rejeitados, por isso,
no mercado de trabalho. A perseguição criminal só valoriza o comércio
clandestino e conflita com medidas preventivas e de tratamento.
Nesse sentido, agora decide o Supremo
Tribunal Federal (STF), no Recurso Extraordinário n.º 635.659, constatando que
a criminalização do porte aumentou em 300% a população carcerária, pois fica
sujeita ao arbítrio policial a tipificação como usuário ou traficante, sendo
importante a fixação de quantia admissível como indício de uso próprio. Como
propõe o ministro Alexandre de Moraes: “Será presumido usuário aquele que
adquirir, guardar, ter em depósito transportar ou trazer consigo de 25 a 60
gramas de maconha”. Apenas não entendo por que tão só a maconha.
Mas a decisão do STF causou revolta no
Senado, como se o Legislativo fosse aviltado por ter sua lei interpretada pelo
Judiciário. Na verdade, se o Senado estivesse de acordo com a interpretação
dada, não se sentiria afrontado, a mostrar ser questão real o mérito da
decisão.
Com pretenso moralismo, típico de ano
eleitoral, sob a pressão, mormente, de senadores bolsonaristas, propôs o
presidente do Senado a Emenda Constitucional n.º 45/2023, colocando no capítulo
dos Direitos Fundamentais a criminalização do porte de entorpecente, em
qualquer quantidade, como se uma norma inconstitucional, só por ser incluída na
Constituição, deixasse de ser inconstitucional!
Assim, em grave retrocesso à tendência
europeia, a emenda aprovada no Senado cria inciso no artigo 5.º da Constituição
do seguinte teor: “A lei considerará crime a posse e o porte, independentemente
da quantidade, de entorpecentes e drogas afins, sem autorização ou em desacordo
com determinação legal ou regulamentar, observada a distinção entre traficante
e usuário por todas as circunstâncias fáticas do caso concreto, aplicáveis ao
usuário penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência”.
Nada pior para o Direito Penal e os direitos
humanos do que ano eleitoral: o obscurantismo prevalece para alimentar o
discurso de palanque visando a contentar a população crédula em soluções
fáceis, sendo ainda mais grave hoje, quando se verifica pelas redes sociais ser
maior que o desenvolvimento da inteligência artificial o crescimento da burrice
natural.
Texto BRILHANTE, argumentação perfeita! Parabéns ao autor, e ao blog que divulga seu trabalho! Novamente, a nefasta influência BOLSONARISTA no Congresso, neste caso encampada pelo presidente do Senado, ameaça a sociedade brasileira! Colocar na Constituição uma proposta absurda como esta é um desserviço à Nação!
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