quinta-feira, 9 de maio de 2024

Maílson da Nóbrega - O país dos privilégios e dos gastos garantidos

Valor Econômico

Estabelecer prioridades eternas é incompatível com as transformações ditadas pela realidade e pela dinâmica institucional

O economista Fernando de Holanda Barbosa apontou, em livro, os privilégios do Brasil (O Flagelo da Economia de Privilégios: Brasil, 1947-2020, FGV Editora, 2021). Eles estão entranhados nos costumes, na lei e na Constituição. Basta ver dois exemplos recentes: a reforma tributária e a restauração de quinquênios para juízes, procuradores e outras carreiras.

A reforma tributária legará um sistema racional de cobrança de impostos sobre o consumo, mas incorporou muitos privilégios. Os serviços, consumidos essencialmente pelos mais ricos, pagarão apenas 40% da alíquota básica, que incidirá sobre bens adquiridos pelos mais pobres. Profissionais liberais, a maioria pertencente às classes mais favorecidas, pagarão 70%. O custo anual da PEC dos Quinquênios, em favor de grupos privilegiados, será de R$ 42 bilhões.

Em ambos os casos, invocou-se o direito adquirido. Como jocosamente lembrou o jornalista Fernando Dantas, o lema da bandeira brasileira - “Ordem e Progresso” - poderia ser substituído por “Direito Adquirido”, o qual, mesmo quando obtido de forma ilegítima, é reconhecido pelo Judiciário. Além disso, recursos são garantidos para certas áreas, mediante a vinculação de impostos a gastos específicos, como ocorre com a saúde e a educação. Nenhum país que leve a sério as finanças públicas inclui esse “direito” na sua Carta Magna, como aqui.

Tudo isso começou na crise dos anos 1980, quando se recorreu ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para evitar o colapso das contas externas. O apoio esteve condicionado, como é comum nesses casos, a um ajuste nas contas públicas, cujo déficit era entendido como causa do desequilíbrio macroeconômico. Dizia-se, sem razão, que cortes de gastos na educação serviam apenas para satisfazer o Fundo e os bancos credores. Assim, nos estertores do regime militar, a emenda João Calmon (1983) vinculou 13% dos impostos federais ao setor, o que foi ampliado para 18% na Constituição de 1988. Nos Estados e municípios o percentual é 25%. A regra foi estendida à saúde, para a qual se destinam 15% da receita tributária líquida das três esferas de governo.

A vinculação de impostos a gastos acarreta desperdícios e má alocação de recursos, o que reduz a produtividade. Seus objetivos nem sempre são alcançados. De fato, o Brasil despende em educação, como proporção do PIB, uma vez e meia o que gasta a China e mais do que a média dos países ricos, mas a qualidade é lamentável, como atestam avaliações internacionais. O SUS é visto como política pública de saúde bem-sucedida, mas não se sabe se é eficiente, pois não há avaliação de seu desempenho.

Os gastos primários (não considerados os encargos financeiros) com educação, saúde, Previdência, pessoal, programas sociais e agora investimentos (Lula não admite cortes) corresponderão, em 2024, a 98% do total. Restam 2% para as despesas discricionárias, o que é uma rigidez sem paralelo no mundo. Corremos o risco de crescimento explosivo da relação entre a dívida pública e o PIB. Recentemente, a Secretaria do Tesouro Nacional mostrou que a margem para gastos discricionários desaparecerá até 2032 (talvez antes, penso eu).

De fato, dados o envelhecimento da população, a generosidade do sistema previdenciário e o restabelecimento dos aumentos reais do salário-mínimo, as respectivas despesas crescerão em ritmo superior ao dos demais gastos. As obrigatórias superarão rapidamente 100% dos dispêndios primários. O custeio das demais atividades dependerá de aumento da carga tributária e/ou da dívida pública, o que é praticamente impossível. A percepção desse trágico desfecho acarretará uma crise de confiança e uma séria crise financeira, provocando alta da inflação e queda do potencial de crescimento.

Com a exceção da área econômica, o governo não parece entender a gravidade da situação. Lula prefere criticar quem lança alertas sobre o abismo fiscal. Repete que dispêndios em educação não são gastos, mas investimento. Essa distinção, inexistente nos manuais de finanças públicas, ignora que todos os gastos consomem recursos escassos, independentemente da classificação.

Agora, surgiram duas novas demandas de vinculação. O ministro da Defesa e os comandantes das Forças Armadas reivindicam que os gastos militares sejam estabelecidos permanentemente como proporção do PIB, primeiro ao nível de 1,2%, aumentando progressivamente para 2%, que é o mínimo adotado pelas nações ricas da Otan. Segundo o ministro da Defesa, José Múcio, “o importante para a área de defesa é ter alguma previsibilidade orçamentária para as Forças Armadas honrarem contratos e definirem qual será seu tamanho”. Todos adorariam essa regra. Na mesma toada, o ministro da Segurança, Ricardo Lewandowski, reivindica um novo SUS, o Sistema Unificado de Segurança, com garantia de recursos semelhante à educação e à saúde.

As três grandes revoluções do Ocidente - a inglesa (1688) a americana (1776) e a francesa (1789) - atribuíram ao Legislativo o poder de aprovar o Orçamento, que viria a se tornar a principal lei econômica de todos os países. Cabe à peça orçamentária anual definir as prioridades, as quais costumam mudar. Desse modo, é equivocado vincular recursos a despesas. Estabelecer prioridades eternas é incompatível com as transformações ditadas pela realidade e pela dinâmica institucional. Isso põe em risco o bem-estar das gerações futuras.

As vinculações, aprovadas pelo próprio Congresso, constituem uma aberração. Os respectivos gastos se tornam imutáveis. Nega-se aos parlamentares o exercício de sua mais nobre função, a de definir anualmente as prioridades do país. Eles mesmos apoiam sua castração funcional. Pior, tudo é feito com amplo apoio de segmentos mais bem informados da sociedade.

É preciso, pois, desestimular iniciativas irresponsáveis como a PEC dos Quinquênios, revogar as vinculações e resistir à cultura do gasto garantido, a qual eleva as desigualdades e pode nos trazer consequências nefastas.

 

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