O Globo
Brasília viveu
na última terça-feira uma espécie de “Super Terça” do Judiciário. Num único
dia, o Supremo Tribunal Federal (STF)
cancelou as condenações de Marcelo Odebrecht e José Dirceu por
corrupção e ainda arquivou um inquérito que estava havia anos sem conclusão
contra Romero Jucá (MDB-RR)
e Renan
Calheiros (MDB-AL) para investigar as denúncias contidas na
delação da... Odebrecht. Noutro ponto da capital federal, o Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) livrou da
cassação o ex-juiz Sergio Moro,
acusado de abuso do poder econômico na eleição em que se tornou senador
pelo Paraná.
Para completar, a deputada Carla Zambelli (PL-SP) se tornou ré no STF. A acusação: patrocinar a invasão do site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pelo hacker de Araraquara, o mesmo que invadiu o Telegram da Operação Lava-Jato e capturou as mensagens entre procuradores e juízes que se tornaram cruciais para a anulação das sentenças.
O enredo é surreal, mas, para quem já se
acostumou a interpretar as decisões do Judiciário pela ótica política, elas
eram até previsíveis. Se na política ainda é necessário demonstrar certa
coerência, para não afugentar eleitores, na Justiça brasileira essa premissa já
foi abandonada faz tempo.
Dias Toffoli já
havia anulado as
provas do acordo de leniência da Odebrecht e suspendido o pagamento
das multas — não só da empreiteira, mas também da
J&F, que nada tinha a ver com a Lava-Jato. Naquelas ocasiões,
como agora com Marcelo Odebrecht, ele se sustentou na premissa de que as
confissões ao Ministério
Público Federal foram feitas sob coação — um “pau de arara do
século XXI”, “verdadeira tortura psicológica” para obter “provas” contra
inocentes.
É difícil identificar todo esse sofrimento
nos vídeos que mostram um sorridente Emílio Odebrecht contando ter
visitado Lula no
Palácio do Planalto para comunicar que a reforma do sítio de Atibaia (SP) seria
entregue no prazo prometido.
Ou ainda no tom resoluto com que Marcelo Odebrecht diz ter pedido ao pai para comunicar ao presidente que já davam dinheiro à campanha de Dilma Rousseff no caixa dois bem antes da eleição de 2010, “para ele depois não vir cobrar mais”. Marcelo, que identificava Lula nos sistemas de propina como “amigo”, ainda contou ter batizado Toffoli de “amigo do amigo de meu pai”.
Se o ministro acredita no que escreveu, não
dá para entender como concluiu que uma delação mentirosa, obtida sob tortura,
pode ser considerada válida. A decisão fica ainda mais incompreensível quando
se sabe que, em negociação que corre noutro processo, seu colega de
Supremo André
Mendonça perguntou aos advogados de 12 empresas com acordos de
leniência, entre elas Odebrecht e Braskem, se elas tinham sido vítimas de
coação. Nenhuma
bancou a tese.
A única explicação possível para o twist
carpado jurídico é que, mantendo a validade das confissões, Toffoli cancela as
penas, mas mantém os benefícios — como a possibilidade de
voltar a fechar contratos com o setor público ou a garantia de os réus não
serem mais processados pelos crimes já admitidos. A Odebrecht acaba de ganhar a
licitação da Petrobras para
as obras que terminarão a refinaria Abreu e Lima. Sem o acordo, não poderia ter
ganhado.
A lógica é semelhante à adotada por todo o
Supremo há duas semanas, ao derrubar a liminar que permitiu colocar na direção
das empresas controladas pelo governo políticos vetados pela Lei das Estatais.
A liminar se tornou ilegal, mas os políticos que se aboletaram nos cargos em virtude
dela puderam continuar onde estavam.
Claro que a incoerência das decisões não
passou despercebida aos olhos da opinião pública. Elas engrossam um caldo de
insatisfação com a presença dos magistrados em frequentes convescotes
internacionais pagos por empresas com interesses nas Cortes
superiores. E se somam à pressão inclemente do bolsonarismo contra o que chamam
de perseguição do STF à direita golpista — em especial, do ministro Alexandre de
Moraes.
Na lógica fria da lei, nada disso deveria
contar para as decisões judiciais. Na política, porém, é preciso escolher as
guerras a ganhar, para não perder todas. Aparentemente, as escolhas que
beneficiaram Odebrecht e Dirceu entraram nesse cálculo. E, se do outro lado da
balança estavam Sergio Moro, já absolvido pelo TSE, ou o bolsonarista Jorge Seif (PL-SC),
alvo de um julgamento já
cheio de reviravoltas, que seja.
Por uma insólita coincidência de datas, hoje se completam oito anos da revelação do célebre diálogo em que Romero Jucá dizia que era preciso um “grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”, para “estancar a sangria” provocada pelas investigações de corrupção. A conversa entrou para a história — e as histórias contadas pelos Odebrecht ainda acabarão nas páginas de ficção. Mas o grande acordo está aí. E é bem real.
Precisamos passar o País a limpo.
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