quinta-feira, 23 de maio de 2024

Malu Gaspar - O grande acordo

O Globo

Brasília viveu na última terça-feira uma espécie de “Super Terça” do Judiciário. Num único dia, o Supremo Tribunal Federal (STF) cancelou as condenações de Marcelo Odebrecht e José Dirceu por corrupção e ainda arquivou um inquérito que estava havia anos sem conclusão contra Romero Jucá (MDB-RR) e Renan Calheiros (MDB-AL) para investigar as denúncias contidas na delação da... Odebrecht. Noutro ponto da capital federal, o Tribunal Superior Eleitoral (TSElivrou da cassação o ex-juiz Sergio Moro, acusado de abuso do poder econômico na eleição em que se tornou senador pelo Paraná.

Para completar, a deputada Carla Zambelli (PL-SP) se tornou ré no STF. A acusação: patrocinar a invasão do site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pelo hacker de Araraquara, o mesmo que invadiu o Telegram da Operação Lava-Jato e capturou as mensagens entre procuradores e juízes que se tornaram cruciais para a anulação das sentenças.

O enredo é surreal, mas, para quem já se acostumou a interpretar as decisões do Judiciário pela ótica política, elas eram até previsíveis. Se na política ainda é necessário demonstrar certa coerência, para não afugentar eleitores, na Justiça brasileira essa premissa já foi abandonada faz tempo.

Dias Toffoli já havia anulado as provas do acordo de leniência da Odebrecht e suspendido o pagamento das multas — não só da empreiteira, mas também da J&F, que nada tinha a ver com a Lava-Jato. Naquelas ocasiões, como agora com Marcelo Odebrecht, ele se sustentou na premissa de que as confissões ao Ministério Público Federal foram feitas sob coação — um “pau de arara do século XXI”, “verdadeira tortura psicológica” para obter “provas” contra inocentes.

É difícil identificar todo esse sofrimento nos vídeos que mostram um sorridente Emílio Odebrecht contando ter visitado Lula no Palácio do Planalto para comunicar que a reforma do sítio de Atibaia (SP) seria entregue no prazo prometido.

Ou ainda no tom resoluto com que Marcelo Odebrecht diz ter pedido ao pai para comunicar ao presidente que já davam dinheiro à campanha de Dilma Rousseff no caixa dois bem antes da eleição de 2010, “para ele depois não vir cobrar mais”. Marcelo, que identificava Lula nos sistemas de propina como “amigo”, ainda contou ter batizado Toffoli de “amigo do amigo de meu pai”.

Se o ministro acredita no que escreveu, não dá para entender como concluiu que uma delação mentirosa, obtida sob tortura, pode ser considerada válida. A decisão fica ainda mais incompreensível quando se sabe que, em negociação que corre noutro processo, seu colega de Supremo André Mendonça perguntou aos advogados de 12 empresas com acordos de leniência, entre elas Odebrecht e Braskem, se elas tinham sido vítimas de coação. Nenhuma bancou a tese.

A única explicação possível para o twist carpado jurídico é que, mantendo a validade das confissões, Toffoli cancela as penas, mas mantém os benefícios — como a possibilidade de voltar a fechar contratos com o setor público ou a garantia de os réus não serem mais processados pelos crimes já admitidos. A Odebrecht acaba de ganhar a licitação da Petrobras para as obras que terminarão a refinaria Abreu e Lima. Sem o acordo, não poderia ter ganhado.

A lógica é semelhante à adotada por todo o Supremo há duas semanas, ao derrubar a liminar que permitiu colocar na direção das empresas controladas pelo governo políticos vetados pela Lei das Estatais. A liminar se tornou ilegal, mas os políticos que se aboletaram nos cargos em virtude dela puderam continuar onde estavam.

Claro que a incoerência das decisões não passou despercebida aos olhos da opinião pública. Elas engrossam um caldo de insatisfação com a presença dos magistrados em frequentes convescotes internacionais pagos por empresas com interesses nas Cortes superiores. E se somam à pressão inclemente do bolsonarismo contra o que chamam de perseguição do STF à direita golpista — em especial, do ministro Alexandre de Moraes.

Na lógica fria da lei, nada disso deveria contar para as decisões judiciais. Na política, porém, é preciso escolher as guerras a ganhar, para não perder todas. Aparentemente, as escolhas que beneficiaram Odebrecht e Dirceu entraram nesse cálculo. E, se do outro lado da balança estavam Sergio Moro, já absolvido pelo TSE, ou o bolsonarista Jorge Seif (PL-SC), alvo de um julgamento já cheio de reviravoltas, que seja.

Por uma insólita coincidência de datas, hoje se completam oito anos da revelação do célebre diálogo em que Romero Jucá dizia que era preciso um “grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”, para “estancar a sangria” provocada pelas investigações de corrupção. A conversa entrou para a história — e as histórias contadas pelos Odebrecht ainda acabarão nas páginas de ficção. Mas o grande acordo está aí. E é bem real.

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Precisamos passar o País a limpo.