terça-feira, 28 de maio de 2024

Marcus Cremonese - Quando a verdade vale mais que um salário ou posição

Com o avanço gradual e cada vez mais intenso das mudanças climáticas, água e fogo vêm gerando tragédias. Tragédias que, como temos visto, vêm se tornando campos férteis para a semeadura de mentiras.

Enquanto o Rio Grande do Sul enfrenta as consequências das enchentes deste mês, os australianos começam a se preparar, ainda em junho, para a estação de fogo nas florestas, evento que ocorre todo ano entre novembro e janeiro do ano seguinte.

Os fogos nas matas da Austrália acontecem há milhões de anos e contribuíram até mesmo para criar características próprias da fauna e da flora deste continente. Os incêndios mais destrutivos são precedidos por altas temperaturas, baixa umidade relativa do ar e ventos fortes. Estes três fatores encontram seu "prato-feito" nas florestas de eucaliptos – a maior parte do ano extremamente secas e sempre impregnadas de seu óleo natural.

No entanto, em seus mais de 60 mil anos vivendo nesta terra, os aborígenes desenvolveram meios de contornar ou evitar situações catastróficas. Nas últimas décadas, os ex-colonizadores europeus, ou os atuais governos dos Estados, acolheram velhas práticas dos povos originários e acabaram por adotar ou adaptar suas técnicas seculares. São as chamadas backburn, ou seja, as queimas preventivas, em áreas de maior risco. Esta queima é coordenada e feita em várias áreas pelos bombeiros rurais. Destes, 72.490 são voluntários. O orçamento de combate ao fogo é da ordem de 534 milhões de dólares por ano. E, naturalmente, bombeiros e polícia investigam as causas da maioria desses incêndios – que podem ter origem criminosa ou por descuido, embora muito raramente. Mesmo as populações das menores vilas no interior são informadas e adotam medidas para encarar esses eventos.

A cobertura da mídia

Os incêndios de novembro de 2019 a janeiro de 2020 foram os mais intensos e abrangentes já ocorridos aqui, e tiveram ampla cobertura internacional. No Estado de New South Wales, onde vivo, foram atingidos cinco e meio milhões de hectares, parte do total dos 243.000 quilômetros quadrados que arderam no país. Isto resultou na destruição de 2.779 casas e na morte de 34 pessoas.

A maioria da mídia australiana, consultando cientistas, meteorologistas, agrônomos e ecologistas foi quase unânime em reportar os fatos como uma evidência inegável e aterradora do aquecimento global. O "quase", acima, ficou por conta da organização News Corp Australia, de propriedade de Rupert Murdoch. Esse "quase" é para ser lido como: "de forma alguma", ou "muito pelo contrário".

Murdoch, nascido na Austrália e naturalizado norte-americano, é dono de um império de empresas, entre elas a Fox Corporation, The Wall Street Journal, HarperCollins e o The New York Post. As empresas americanas abertamente apoiaram George W. Bush e Donald Trump. A mim não incomoda a tendência política ou o negacionismo gerenciado e apregoado por Murdoch. É um direito dele. Ele possui ainda jornais na Inglaterra e é dono também de cerca de 65 por cento da mídia impressa e televisiva na Austrália. 

Embora as polícias e os bombeiros estaduais não tenham encontrado nem um só caso de fogo intencional nos incêndios em questão, a News Corp Australia, segundo sua gerente financeira e comercial Emily Townsend, fez circular "uma campanha de informações falsas" apresentando uma "cobertura irresponsável e perigosa" da crise. Em e-mail dirigido ao chefe executivo Michael Miller, Emily diz que sentiu "severo impacto pela cobertura  mentirosa dos incêndios que visou desviar a atenção da razão verdadeira dos incêndios – que é o aquecimento global – mudando o enfoque para incêndios premeditados".

Emily já vinha ocupando esse alto cargo executivo por cinco anos. Neste e-mail, ela prossegue: "As reportagens que vi no The Australian, The Daily Telegraph e no Herald Sun são não apenas irresponsáveis; são danosas para as comunidades. (...) Sinto até uma espécie de náusea porque, de certa forma – e no entender de alguns –, eu estive contribuindo para a disseminação desse negacionismo com respeito ao aquecimento global". E para terminar esse e-mail – através do qual ela formaliza a sua demissão da empresa –, ela confessa: "É injusta e inescrupulosa a forma como esta companhia vem agindo com relação ao aquecimento global". 

Gestos corajosos como este de Emily me fazem lembrar que, mesmo em meio às maiores catástrofes – e dentre elas a do negacionismo climático –, ainda se pode  encontrar profissionais que arriscam tudo a bem da exatidão daquilo que virá a ser notícia.

*Marcus Cremonese é graduado em jornalismo pela FACHA, Rio de Janeiro. Teve matérias publicadas no Jornal do Brasil e no O Tempo, de Belo Horizonte. Mudando-se para a Austrália, publicou no Journal of Audiovisual Media in Medicine (JAMM), de Londres. Produz ilustrações científicas para livros e revistas médicas.

5 comentários:

  1. Necessário e esclarecedor texto do Marcus Cremonese.

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  2. Excelente artigo do amigo Cremonese. Não consegui um login. Meu nome é Julio Cesar de Magalhães Alves.

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  3. Anônimo3/6/24 19:07

    Ótimo texto de Marcus Cremonese!

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  4. Anônimo6/6/24 09:14

    Excelente texto de Marcus Cremonese.

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