Enquanto o Rio Grande do Sul enfrenta as
consequências das enchentes deste mês, os australianos começam a se preparar,
ainda em junho, para a estação de fogo nas florestas, evento que ocorre todo
ano entre novembro e janeiro do ano seguinte.
Os fogos nas matas da Austrália acontecem há milhões de anos e contribuíram até mesmo para criar características próprias da fauna e da flora deste continente. Os incêndios mais destrutivos são precedidos por altas temperaturas, baixa umidade relativa do ar e ventos fortes. Estes três fatores encontram seu "prato-feito" nas florestas de eucaliptos – a maior parte do ano extremamente secas e sempre impregnadas de seu óleo natural.
No entanto, em seus mais de 60 mil anos
vivendo nesta terra, os aborígenes desenvolveram meios de contornar ou evitar
situações catastróficas. Nas últimas décadas, os ex-colonizadores europeus, ou
os atuais governos dos Estados, acolheram velhas práticas dos povos originários
e acabaram por adotar ou adaptar suas técnicas seculares. São as chamadas backburn,
ou seja, as queimas preventivas, em áreas de maior risco. Esta queima é
coordenada e feita em várias áreas pelos bombeiros rurais. Destes, 72.490 são voluntários.
O orçamento de combate ao fogo é da ordem de 534 milhões de dólares por ano. E,
naturalmente, bombeiros e polícia investigam as causas da maioria desses
incêndios – que podem ter origem criminosa ou por descuido, embora muito
raramente. Mesmo as populações das menores vilas no interior são informadas e
adotam medidas para encarar esses eventos.
A cobertura da mídia
Os incêndios de novembro de 2019 a janeiro de
2020 foram os mais intensos e abrangentes já ocorridos aqui, e tiveram ampla
cobertura internacional. No Estado de New South Wales, onde vivo, foram
atingidos cinco e meio milhões de hectares, parte do total dos 243.000
quilômetros quadrados que arderam no país. Isto resultou na destruição de 2.779
casas e na morte de 34 pessoas.
A maioria da mídia australiana, consultando
cientistas, meteorologistas, agrônomos e ecologistas foi quase unânime em
reportar os fatos como uma evidência inegável e aterradora do aquecimento
global. O "quase", acima, ficou por conta da organização News
Corp Australia, de propriedade de Rupert Murdoch. Esse "quase" é para
ser lido como: "de forma alguma", ou "muito pelo
contrário".
Murdoch, nascido na Austrália e naturalizado
norte-americano, é dono de um império de empresas, entre elas a Fox
Corporation, The Wall Street Journal, HarperCollins e o The New York
Post. As empresas americanas abertamente apoiaram George W. Bush e Donald
Trump. A mim não incomoda a tendência política ou o negacionismo gerenciado e
apregoado por Murdoch. É um direito dele. Ele possui ainda jornais na
Inglaterra e é dono também de cerca de 65 por cento da mídia impressa e
televisiva na Austrália.
Embora as polícias e os bombeiros estaduais
não tenham encontrado nem um só caso de fogo intencional nos incêndios em
questão, a News Corp Australia, segundo sua gerente financeira e comercial
Emily Townsend, fez circular "uma campanha de informações falsas"
apresentando uma "cobertura irresponsável e perigosa" da crise. Em
e-mail dirigido ao chefe executivo Michael Miller, Emily diz que sentiu
"severo impacto pela cobertura mentirosa dos incêndios que
visou desviar a atenção da razão verdadeira dos incêndios – que é o aquecimento
global – mudando o enfoque para incêndios premeditados".
Emily já vinha ocupando esse alto cargo
executivo por cinco anos. Neste e-mail, ela prossegue: "As reportagens que
vi no The Australian, The Daily Telegraph e no Herald Sun são
não apenas irresponsáveis; são danosas para as comunidades. (...) Sinto até uma
espécie de náusea porque, de certa forma – e no entender de alguns –, eu estive
contribuindo para a disseminação desse negacionismo com respeito ao aquecimento
global". E para terminar esse e-mail – através do qual ela formaliza a sua
demissão da empresa –, ela confessa: "É injusta e inescrupulosa a forma
como esta companhia vem agindo com relação ao aquecimento global".
Gestos corajosos como este de Emily me fazem
lembrar que, mesmo em meio às maiores catástrofes – e dentre elas a do
negacionismo climático –, ainda se pode encontrar profissionais que
arriscam tudo a bem da exatidão daquilo que virá a ser notícia.
*Marcus Cremonese é graduado em
jornalismo pela FACHA, Rio de Janeiro. Teve matérias publicadas no Jornal do
Brasil e no O Tempo, de Belo Horizonte. Mudando-se para a Austrália, publicou
no Journal of Audiovisual Media in Medicine (JAMM), de Londres. Produz
ilustrações científicas para livros e revistas médicas.
Necessário e esclarecedor texto do Marcus Cremonese.
ResponderExcluirExcelente artigo do amigo Cremonese. Não consegui um login. Meu nome é Julio Cesar de Magalhães Alves.
ResponderExcluirMuito bom o artigo.
ResponderExcluirÓtimo texto de Marcus Cremonese!
ResponderExcluirExcelente texto de Marcus Cremonese.
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