terça-feira, 28 de maio de 2024

Miguel Caballero * - Quando a água baixar

O Globo

Não haverá evolução sem inclusão das práticas de preservação nas prioridades de governos e legisladores

As enchentes no Rio Grande do Sul ficarão marcadas no Brasil também como o episódio em que os eventos climáticos extremos saltaram dos estudos de ambientalistas para bater às portas de centenas de milhares de pessoas. Temos visto, desde então, boa disposição dos governos federal e estadual de trabalhar em conjunto na emergência, uma bonita onda de solidariedade dos brasileiros e as comoventes histórias de superação de quem perdeu tudo. A reconstrução do estado levará anos, e é ainda incerto o que será de várias cidades mais afetadas. Mas, é da natureza humana, em breve o estágio de mobilização nacional passará.

O desafio é que a agenda de prevenção aos efeitos da crise do clima mantenha protagonismo quando a água baixar. Numa época em que as redes sociais são o campo de batalha na guerra diária do debate público, é tão inútil quanto sem sentido a pretensão de evitar a politização das questões ambientais. É desejável justamente o contrário, que elas tenham mais peso na política e que não se restrinjam a debates acadêmicos, a setores da gestão pública ou a cartilhas mais modernas de ESG em empresas privadas.

Ala mais desenvolta nas redes, o bolsonarismo tinha um problema fático na atual crise: a catástrofe era a materialização de um evento ambiental extremo a desmentir os negacionistas. Criticar os governos pela falta de prevenção seria escancarada incoerência para quem trata a emergência do clima como invenção da esquerda ou de um suposto “globalismo”. Ainda que com grande alcance, as esdrúxulas fake news sobre os governos impedirem a chegada de doações a desabrigados estiveram longe de ser das narrativas mais bem articuladas para manter a chama da guerra cultural. Mais aderente ao ideário antissistema do populismo de direita, sobrou a exaltação do “empreendedorismo” na tragédia e das iniciativas da sociedade civil às margens do Estado.

Se o negacionismo ambiental precisa ser derrotado, os políticos normais ainda estão longe de dar respostas suficientes. A uma plateia de prefeitos na semana passada, em Brasília, Lula declarou que a crise gaúcha “mudou o paradigma do tratamento dos desastres climáticos”. Discurso bonito, a ser testado não apenas quando as tragédias acontecem, mas sobretudo nas ações de governo com impacto no meio ambiente. Com as atenções do país voltadas às inundações no Sul, Lula mudou o comando da Petrobras numa troca em que um dos panos de fundo era o peso que a preservação ambiental terá no destino dos investimentos da companhia. A nova presidente chega com orientação explícita de apoiar a prospecção para exploração de petróleo na Foz do Amazonas, contestada por ambientalistas. Para além desse caso, não tem sido um governo com um plano claro de renovação das fontes de energia.

No âmbito local da tragédia, não é melhor a situação. Eduardo Leite, com anuência dos deputados gaúchos, impôs, na visão de ambientalistas, um retrocesso ao modificar regras do Código Ambiental estadual. Na impossibilidade de apresentar investimentos em prevenção num estado que está no epicentro das novas dinâmicas climáticas no continente, tem repetido como mantra “não cometer erros por negacionismo”. É muito pouco. O prefeito da capital, Sebastião Melo, nem sequer demonstra essa preocupação, e sua gestão agravou a situação em Porto Alegre pela inépcia em ao menos manter em funcionamento o sistema municipal contra enchentes.

Obras estruturais de prevenção não costumam ser vistas pelos políticos como as que mais pagam dividendos eleitorais. Muitas vezes são demoradas e pouco visíveis aos eleitores. A tragédia é o pior caminho para a sociedade aprender a priorizar sua própria sustentabilidade, mas pode ser um tratamento de choque. Não haverá evolução sem passar pela inclusão das práticas de preservação nas prioridades de governos e legisladores. Num país com dificuldade de manter políticas públicas de longo prazo e numa realidade em que os mais pobres são sempre os mais afetados nas catástrofes, há poucos motivos para o otimismo de acreditar que estaremos nessa direção.

*Miguel Caballero é editor do impresso do GLOBO

 

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