domingo, 5 de maio de 2024

Míriam Leitão - Folhas do tempo e lições a reter

O Globo

O ano de aniversários redondos de eventos históricos é uma oportunidade de o Brasil olhar para si, evitar os erros e lembrar os acertos

No ano dos aniversários redondos, o Brasil deveria olhar mais para si mesmo e escolher caminhos que nos afastem dos erros e nos aproximem dos acertos que algumas dessas datas apontam. São duzentos anos da primeira Constituição do Brasil independente, 60 anos da ditadura militar, 50 anos da revolução democrática de Portugal, 40 anos da memorável campanha das Diretas, 30 anos do Plano Real, 30 anos da morte do Senna, dez anos da Lava-Jato. É como se o passado, bom ou ruim, aparecesse como um calendário antigo em papel em que as folhinhas voam indicando a passagem rápida do tempo.

O caminho constitucional é o único possível, como aprendemos duramente, mas temos tratado a nossa melhor Carta como depósito de questões corporativas ou conjunturais sem relevância. Basta ver a PEC que classifica como crime o porte de qualquer quantidade até de drogas leves, e a PEC que aumenta o salário da elite do judiciário a cada cinco anos. Uma delas vai no caminho contrário do mundo, e a outra bate de frente com o controle das contas públicas.

A ditadura militar fez 60 anos com o governo impedindo a si mesmo de lembrar o momento, apesar de ter feito a campanha em nome da defesa democrática. Nem mesmo a Comissão de Mortos e Desaparecidos pôde ser recriada, porque os vetos têm sido mais poderosos do que a convicção de que a memória é o alicerce do futuro. Culpar os militares é uma falsidade e uma confissão. Já conversei com oficiais de alta patente que dizem achar natural a recriação dessa instância instalada na administração Fernando Henrique Cardoso. Quem no governo diz que são os militares que ficariam incomodados se a Comissão fosse recriada confessa agir sob o domínio do medo e se deixa tutelar.

Isso é o contrário do espírito que explodiu em todas as praças no memorável início de 1984 na campanha das Diretas, quando espontaneamente o Brasil foi para as ruas, cantando, de camisa amarela, e com grande alegria cívica. O pacto dos democratas no palco, juntando correntes políticas diferentes, era lindo de ver. Quem esteve no chão da Sé, na Candelária, no Vale do Anhangabaú, e em todos os lugares onde se cantou pela democracia, soube que a ditadura acabava ali. A derrota imposta pelo Congresso na emenda Dante de Oliveira foi apenas o espasmo final de um governo que já nascera decrépito porque se apresentou como defensor de valores aos quais era inimigo. Agora, de novo, o país tem visto o uso da palavra liberdade pelos que querem feri-la de morte.

Palavras que voltaram a ser pronunciadas trazem o mesmo sinistro propósito que tiveram ao longo da história. Antonio Salazar também dizia que agia em nome de “Deus, Pátria e Família” quando impôs a Portugal uma ditadura de 48 anos. O regime salazarista acabou numa linda madrugada há 50 anos quando o povo armado com cravos e uma música restaurou a democracia. Aqui no Brasil vivíamos uma noite fechada, naquele 1974. Um ano e meio depois, em outubro de 1975, seria assassinado Vladimir Herzog. Três anos depois, no mesmo mês de abril, seria fechado o Congresso brasileiro para impor senadores sem voto e intervenção no Judiciário. Ainda estávamos longe da democracia, mas ver a festa dos cravos fortaleceu a esperança de quem resistia.

Entre os aniversários redondos do ano, a década da Operação Lava Jato ainda é vista majoritariamente pelos seus defeitos. Eles foram explicitados quando o juiz que a conduziu revelou publicamente que tinha uma agenda política, indo para o governo que foi favorecido pelas suas sentenças. Sua parcialidade foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Mas não se pode esquecer as confissões, o dinheiro devolvido, as provas trazidas pelas investigações. O combate à corrupção é agenda democrática, porque o uso do dinheiro coletivo deve ter transparência. É preciso evitar que os autoritários usem, de novo, o combate à corrupção como armadilha.

Enquanto o Real estava sendo preparado, ainda era a URV, Ayrton Senna morreu naquele trágico acidente de primeiro de maio. No auge da hiperinflação brasileira, com a autoestima do brasileiro em frangalhos, eram as vitórias de Senna que nos davam esperança. Eram nossas as vitórias dele. Sua morte foi um fosso fundo que o país visitou. O Real chegou em primeiro de julho enterrando um dos maiores erros da política econômica da ditadura. A moeda foi conquista da democracia. Sobre ela falarei mais adiante nesse ano dos aniversários redondos.

 

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