O Globo
O ano de aniversários redondos de eventos históricos é uma oportunidade de o Brasil olhar para si, evitar os erros e lembrar os acertos
No ano dos aniversários redondos, o Brasil
deveria olhar mais para si mesmo e escolher caminhos que nos afastem dos erros
e nos aproximem dos acertos que algumas dessas datas apontam. São duzentos anos
da primeira Constituição do Brasil independente, 60 anos da ditadura militar,
50 anos da revolução democrática de Portugal, 40 anos da memorável campanha das
Diretas, 30 anos do Plano Real, 30 anos da morte do Senna, dez anos da
Lava-Jato. É como se o passado, bom ou ruim, aparecesse como um calendário antigo
em papel em que as folhinhas voam indicando a passagem rápida do tempo.
O caminho constitucional é o único possível, como aprendemos duramente, mas temos tratado a nossa melhor Carta como depósito de questões corporativas ou conjunturais sem relevância. Basta ver a PEC que classifica como crime o porte de qualquer quantidade até de drogas leves, e a PEC que aumenta o salário da elite do judiciário a cada cinco anos. Uma delas vai no caminho contrário do mundo, e a outra bate de frente com o controle das contas públicas.
A ditadura militar fez 60 anos com o governo
impedindo a si mesmo de lembrar o momento, apesar de ter feito a campanha em
nome da defesa democrática. Nem mesmo a Comissão de Mortos e Desaparecidos pôde
ser recriada, porque os vetos têm sido mais poderosos do que a convicção de que
a memória é o alicerce do futuro. Culpar os militares é uma falsidade e uma
confissão. Já conversei com oficiais de alta patente que dizem achar natural a
recriação dessa instância instalada na administração Fernando
Henrique Cardoso. Quem no governo diz que são os militares que
ficariam incomodados se a Comissão fosse recriada confessa agir sob o domínio
do medo e se deixa tutelar.
Isso é o contrário do espírito que explodiu
em todas as praças no memorável início de 1984 na campanha das Diretas, quando
espontaneamente o Brasil foi para as ruas, cantando, de camisa amarela, e com
grande alegria cívica. O pacto dos democratas no palco, juntando correntes
políticas diferentes, era lindo de ver. Quem esteve no chão da Sé, na
Candelária, no Vale do Anhangabaú, e em todos os lugares onde se cantou pela
democracia, soube que a ditadura acabava ali. A derrota imposta pelo Congresso
na emenda Dante de Oliveira foi apenas o espasmo final de um governo que já
nascera decrépito porque se apresentou como defensor de valores aos quais era
inimigo. Agora, de novo, o país tem visto o uso da palavra liberdade pelos que
querem feri-la de morte.
Palavras que voltaram a ser pronunciadas
trazem o mesmo sinistro propósito que tiveram ao longo da história. Antonio
Salazar também dizia que agia em nome de “Deus, Pátria e Família” quando impôs
a Portugal uma ditadura de 48 anos. O regime salazarista acabou numa linda
madrugada há 50 anos quando o povo armado com cravos e uma música restaurou a
democracia. Aqui no Brasil vivíamos uma noite fechada, naquele 1974. Um ano e
meio depois, em outubro de 1975, seria assassinado Vladimir Herzog. Três anos
depois, no mesmo mês de abril, seria fechado o Congresso brasileiro para impor
senadores sem voto e intervenção no Judiciário. Ainda estávamos longe da
democracia, mas ver a festa dos cravos fortaleceu a esperança de quem resistia.
Entre os aniversários redondos do ano, a
década da Operação Lava
Jato ainda é vista majoritariamente pelos seus defeitos. Eles
foram explicitados quando o juiz que a conduziu revelou publicamente que tinha
uma agenda política, indo para o governo que foi favorecido pelas suas
sentenças. Sua parcialidade foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Mas não se pode esquecer as confissões, o dinheiro devolvido, as provas
trazidas pelas investigações. O combate à corrupção é agenda democrática,
porque o uso do dinheiro coletivo deve ter transparência. É preciso evitar que
os autoritários usem, de novo, o combate à corrupção como armadilha.
Enquanto o Real estava sendo preparado, ainda
era a URV, Ayrton Senna morreu
naquele trágico acidente de primeiro de maio. No auge da hiperinflação
brasileira, com a autoestima do brasileiro em frangalhos, eram as vitórias de
Senna que nos davam esperança. Eram nossas as vitórias dele. Sua morte foi um
fosso fundo que o país visitou. O Real chegou em primeiro de julho enterrando
um dos maiores erros da política econômica da ditadura. A moeda foi conquista
da democracia. Sobre ela falarei mais adiante nesse ano dos aniversários
redondos.
Um comentário:
Corrida de automóvel é uma bobagem.
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