domingo, 26 de maio de 2024

Muniz Sodré - Guerra molecular

Folha de S. Paulo

Quem restringe guerra a conflito entre Estados acha excessivo identificá-la à violência de milícias, terroristas e neonazistas e não vê que hater é hoje identidade sociopolítica

No anseio necropolítico do Bozo, a ditadura militar deveria ter matado 30 mil pessoas. Não é bizarrice, nem número aleatório, é o total estimado de mortos por Pinochet. Não se conectou essa intenção dolosa ao descaso com a morte de brasileiros durante a pandemia. Mas uma linha de sentido contínua passa pelo caos golpista até o negacionismo ecocida. A explicação cândida, em look colete laranja, do governador gaúcho para a falta de prevenção da catástrofe apesar dos avisos, é uma derivada: "Tínhamos outras prioridades". Entre elas, 50 atos ofensivos ao meio ambiente.

A ninguém ocorreria associar a isso o conceito de guerra civil. Uma exceção é o alemão Hans Magnus Enzensberger, que vê na luta travada em maior proximidade física "a forma original de todos os conflitos coletivos" (em "Guerra Civil"). Originalmente, o outro odiado é o vizinho. Para ele, "enquanto a guerra de Estado clássica tende à monopolização do poder, fortalecendo o aparelho de Estado acima de todos os níveis, na guerra civil existe a ameaça permanente do colapso da disciplina e da desagregação das milícias em bandos armados que operam segundo os próprios desígnios". Até as Forças regulares incorrem no risco.

Quem restringe "guerra" a conflito entre Estados pode achar excessivo identificá-la ao processo endógeno de violência sistemática. Passa despercebido o fio conceitual que atravessa milicianismo, terrorismos, neonazismos, depredações e formas secundárias de soberania. O mesmo com os urubus do desastre e das fake news em meio ao sofrimento coletivo. No front de guerrilhas digitais, contrapõem-se mentira e ódio à solidariedade popular. Essa é a "essência" da ultradireita.

O fio essencial é a violência livre de fundamentações ideológicas, "o caráter autista dos criminosos, assim como sua incapacidade de distinguir entre destruição e autodestruição" (Enzensberger). É a guerra civil molecular, travada na trincheira tóxica de uma classe média desiludida, por pessoas emparedadas demais em si mesmas para olhar ao redor. Uma antiecologia visceral. Seu amplo espectro expõe o negacionismo climático como estratégia destrutiva de territorialidade.

Não saber, negar, destruir: em Brasília, duas vândalas idosas, indagadas sobre o 8 de janeiro, nada sabiam. Vestiam amarelo, mas dispensariam uniformes, porque o ódio basta como motivação: hater é identidade sociopolítica. Para o extremismo, inimigos seriam, a depender dos lugares, imigrantes, ciganos, negros ou movimentos organizativos de minorias. É um novo sentimento social, pós-sindicalista e pós-fabril, que dispensa reflexões e verdades, pois se retroalimenta num vácuo afetivo: o ódio de si mesmo e do outro, seja pessoa ou objeto. Destruir, autodestruindo-se, eis a fórmula da guerra civil molecular em curso.

 

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