sábado, 4 de maio de 2024

Pablo Orlellado - O caráter golpista do 8 de Janeiro

O Globo

Não foi apenas uma manifestação pacífica de senhorinhas patriotas

Existe uma aparente contradição capturada por uma pesquisa do Datafolha de março deste ano. A maioria dos brasileiros considera que o ex-presidente Bolsonaro tentou dar um golpe de Estado. Porém também acha que o 8 de Janeiro não foi golpe de Estado, mas apenas vandalismo.

Nos dias 19 e 20 de março, a pesquisa perguntou se os entrevistados consideravam o 8 de Janeiro golpe ou vandalismo. Maioria expressiva de dois terços (65%) acha que se tratou apenas de vandalismo, e apenas o outro terço (30%) que foi golpe. Até entre os eleitores de Lula, 52% consideram que a invasão dos três Poderes foi só vandalismo. Na mesma pesquisa, porém, 55% acreditam que Bolsonaro tentou se manter no poder por meio de um golpe. Como é possível que o Brasil acredite que Bolsonaro é golpista, mas que o 8 de Janeiro não foi golpe ou parte de um golpe?

A explicação provável para isso é que a maioria acha que Bolsonaro planejou um golpe — por meio das minutas e pelos esforços para conseguir apoio das Forças Armadas —, mas que o 8 de Janeiro propriamente foi apenas uma manifestação que saiu do controle e terminou em vandalismo. Por essa leitura, o golpismo de Bolsonaro se expressou nas movimentações que fez nos meses finais de 2022, e os eventos de janeiro de 2023 foram apenas excesso de alguns destemperados, sem qualquer respaldo do presidente. Tanto é assim que, segundo a mesma pesquisa, dois terços dos brasileiros — e 53% dos eleitores de Bolsonaro —acreditam que quem participou do 8 de Janeiro não deveria ser anistiado.

Duas reportagens que saíram na última semana podem mudar o entendimento do público sobre o caráter do 8 de Janeiro. Elas trazem novos elementos que evidenciam que a intenção dos agitadores era insurrecional e golpista — demonstram que, em janeiro de 2023, o que aconteceu não foi “apenas vandalismo”.

A primeira reportagem, de Lauro Jardim, no GLOBO, relata as evidências que surgiram no inquérito de uma das julgadas por participação no ato. Mensagens em seu celular, apreendido pela polícia, mostram que o 8 de Janeiro foi planejado para desestabilizar o país e forçar a decretação de GLO (Garantia da Lei e da Ordem), que, ao final, levaria os militares ao poder.

No celular, foram encontradas mensagens dizendo que havia um plano “para a tomada de poder” que “não teria dia para acabar”. Já depois da invasão das sedes dos Poderes, a acusada anunciou em mensagem: “daqui não sairemos até que seja decretada a GLO” e “só sai se o Exército vir. Senão nós vai preso (sic)”. Os áudios e mensagens de texto mostram que o caráter violento do ato foi premeditado. Noutra mensagem, ela diz: “Preparem as máscaras de gás, pano úmido e água no cantil, spray de pimenta, colete, capacete; bala de borracha não vai faltar”. O conjunto evidencia que a violência não foi uma ocorrência fortuita, mas planejada e vinculada ao plano de gerar instabilidade social no país para forçar a convocação de uma GLO que deveria, depois, levar à tomada do poder pelos militares.

A segunda reportagem saiu no site da agência Sportlight e foi baseada em relatório interno da Agência Nacional de Energia Elétrica. O documento mostra que, na madrugada de 8 para 9 de janeiro, três torres de energia tombaram por uma ação que laudos técnicos definiram como sabotagem.

Duas torres em Rondônia e uma no Paraná caíram depois que os parafusos das bases foram cuidadosamente retirados e os cabos de sustentação cortados. O laudo não deixa dúvidas de que foi sabotagem, e a semelhança do procedimento em pontos extremos do país (Rondônia e Paraná) sugere planejamento cuidadoso e articulação nacional. A data, mesmo dia da invasão da sede dos três Poderes, aponta coordenação com o golpismo em curso em Brasília. Tudo sugere que, enquanto os agitadores tomavam os três Poderes, outros grupos nos estados tentavam provocar inquietação social com o corte de energia. A isso se somam ainda os bloqueios de rodovias e o fechamento dos acessos às refinarias de petróleo.

Essas evidências todas não ligam ainda Bolsonaro ao 8 de Janeiro. Se algo nesse sentido surgir, provavelmente virá da delação de Mauro Cid. Porém os elementos que emergiram nesta semana já são suficientes para mostrar que o 8 de Janeiro não foi apenas uma manifestação pacífica de senhorinhas patriotas que saiu do controle pela ação de infiltrados ou pelo excesso de alguns poucos aloprados. Foi uma tentativa malograda de golpe de Estado.

 

Um comentário:

  1. Muito bom! Mas o início do último parágrafo é a frase chave:
    "Essas evidências todas não ligam ainda Bolsonaro ao 8 de Janeiro." E acho que outras evidências não ligarão.
    O canalha criou o ambiente golpista e fez tentativas de executar o golpe, mas com apoio militar insuficiente e resistências de muitos oficiais superiores, abortou seu plano antes de deixar a presidência. Suponho que o 8 de janeiro foi comandado por bolsonaristas sem vinculação direta com o canalha, como uma última tentativa de desencadear o golpe que o genocida já tinha desistido.

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