Folha de S. Paulo
No Rio Grande do Sul, enquanto as câmeras
registram o presente, o passado está sendo levado pelas águas
Já devem estar em dezenas de milhares as imagens da tragédia das cheias no Sul. Todas ficarão para sempre —as que vimos e as que não vimos, mas que outros viram e jamais esquecerão. Poucas desgraças terão sido tão documentadas ao vivo e em tempo real quanto esta —a morte levando vidas, bens, seres de estimação e economias de uma vida inteira, diante das lentes impotentes, capazes, no máximo, de registrar, alertar e transmitir os pedidos de socorro. Não é muito, mas melhor do que as outras tecnologias que falharam criminosamente: os escoamentos, drenagens e prevenções. Sem falar no maior dos crimes, o abuso do planeta.
Como apagar da lembrança
as pessoas em suas casas, prisioneiras da água que não para de subir
e sabendo que só lhes restam minutos? Filhos vendo pais serem arrastados pela
enxurrada e vice-versa? Os apanhados pelos desmoronamentos e que não souberam o
que lhes aconteceu? Os que nunca tinham nadado e não tiveram tempo de aprender?
Os animais ilhados, o cemitério
fluvial de carros, os livros, quadros e objetos perdidos para sempre? Não
é consolo, mas tão inesquecíveis quanto estas serão as imagens dos resgates e
salvamentos heróicos, dos voluntários em botes, canoas e jet skis, das
montanhas de roupas, remédios e alimentos nos abrigos, da solidariedade que
torna o brasileiro melhor do que ele é.
As cenas do cavalo
Caramelo sendo retirado do telhado e muitas outras estão
correndo o mundo. Mas uma que me tocou particularmente foi a que vi, de
relance, num jornal de televisão: uma senhora anônima, estendendo suas fotos
num barranco para que secassem. Fotos de um passado feliz, anterior ao dilúvio,
mostrando pessoas queridas, que talvez se tenham ido nas águas e que ela nunca
mais verá. Minto: verá, sim, nas fotos que tenta salvar.
É cruel. Enquanto as câmeras eternizam o
presente, o passado está sendo levado pela correnteza.
Meu Deus!
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