segunda-feira, 27 de maio de 2024

Sergio Lamucci - O peso das vinculações de despesas no problema fiscal do país

Valor Econômico

O grande desequilíbrio das contas públicas está no lado do gasto, mas enfrentar o problema com determinação não está na agenda do governo

Com menos de um ano de vigência, o novo arcabouço fiscal já tem a credibilidade arranhada. O governo afrouxou em abril a meta de resultado primário (exclui gastos com juros) de 2025 e dos anos seguintes, e o ajuste das contas públicas depende muito de um aumento forte e incerto de receitas, visto com ceticismo por muitos analistas. O grande desequilíbrio fiscal do país está no lado do gasto, mas enfrentar o problema com determinação não está na agenda do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda que a ministra do Planejamento, Simone Tebet, e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tenham falado nas últimas semanas sobre a necessidade de se discutir a vinculação de despesas.

A maior parte dos gastos obrigatórios cresce a um ritmo insustentável, por estarem vinculados ao aumento da receita ou ao reajuste do salário mínimo. Nesse cenário, essas despesas tomam espaço cada vez maior do orçamento, comprimindo os já esquálidos gastos discricionários (aqueles que o governo controla), como o investimento.

A vinculação de despesas é o principal motivo para o desequilíbrio crônico das contas públicas, diz o economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper. É o caso dos gastos com saúde e educação, atrelados à variação da receita, ou o piso previdenciário e de benefícios assistenciais, reajustados pelo salário mínimo, que voltou a ser corrigido no atual governo pela inflação do ano anterior mais o crescimento do PIB de dois anos antes.

“Quando você vincula uma despesa a uma receita, essa despesa tende a crescer acima da inflação, pois a tendência de médio prazo da receita é crescer no mesmo ritmo da atividade econômica. Logo, essa despesa vinculada vai crescer em termos reais [descontada a inflação] ao longo do tempo”, afirma Mendes, chefe da assessoria especial do ministro da Fazenda de 2016 a 2018. “O mesmo ocorre quando você indexa uma despesa a uma variável que tem crescimento real, como o salário mínimo.”

Em maio de 2023, o mínimo já foi corrigido acima da inflação. Isso tem um efeito imediato sobre os gastos com aposentadorias e pensões e o Benefício de Prestação Continuada (BPC, voltados para idosos de baixa renda e pessoas com deficiência). Nas contas de Mendes, a vinculação ao mínimo, em vigor há pouco mais de 18 meses, fará os gastos com a Previdência ficarem R$ 16 bilhões mais elevados neste ano do que se fossem reajustados pela inflação, enquanto as despesas com o BPC ficam R$ 5 bilhões maiores.

Em texto recomendado por Haddad, o economista Bráulio Borges, da LCA Consultores e pesquisador do FGV Ibre, diz que “o salário mínimo é uma variável que deve sim ser reajustada ao longo do tempo em termos reais, refletindo ganhos de produtividade da mão de obra, mas é uma variável que deve regular o mercado de trabalho, ou seja, a vida de quem está participando ativamente da produção econômica”. Já as aposentadorias e pensões deveriam ser reajustadas apenas pela inflação, mantendo o poder de compra ao longo do tempo, escreve Borges.

Com o novo arcabouço fiscal, voltaram a valer as vinculações à receita dos pisos de gastos da União com saúde e educação. No período de vigência do teto de gastos, eles eram corrigidos pela inflação passada. No caso da saúde, as despesas mínimas devem equivaler a pelo menos 15% da receita corrente líquida (RCL). Nos cálculos de Mendes, os gastos com a área neste ano serão quase R$ 60 bilhões maiores do que se houvesse a correção da despesa mínima de 2022 (o último ano antes da alteração da regra) pela inflação.

Já o gasto com educação precisa corresponder a pelo menos 18% da receita líquida de impostos. No entanto, as despesas para essa área já superam o mínimo legal. Com isso, Mendes considera não ser possível dizer que haja um efeito direto da alta do dispêndio mínimo com educação no gasto total.

Reportagem de Jéssica Sant'Ana, Lu Aiko Otta e Guilherme Pimenta publicada pelo Valor na semana passada mostra que os gastos mínimos em educação e saúde até 2028 deverá crescer 106% e 56% em relação ao valor do ano passado, segundo o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2025. Pelas projeções do Ministério do Planejamento, vão sobrar R$ 11,753 bilhões em 2028 para as despesas discricionárias do Executivo, após a dedução dos dispêndios mínimos com educação e saúde. Mudar o critério de variação desses gastos é algo que a equipe econômica cogita, mas a apresentação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) com a alteração não deve ocorrer neste ano. A mudança não seria aprovada com tranquilidade, mas é menos difícil do que desvincular o piso dos benefícios previdenciários e assistenciais do salário mínimo.

Mendes afirma que “acabar com as vinculações não significa autorização para corte imediato de gastos nas áreas protegidas”. Segundo ele, isso não ocorreria porque a maioria dos gastos é obrigatória, como o pagamento de aposentadorias, benefícios sociais e salários. “O fim das vinculações ajudaria a fazer com que o ritmo de crescimento da despesa diminuísse ao longo tempo. Com ela crescendo em ritmo menor que o PIB e a receita, fica mais fácil equilibrar as contas no médio prazo.”

As vinculações protegem basicamente gastos correntes, nota Mendes. “Nas despesas protegidas, até há algum investimento dentro de saúde e educação (construção de escolas e hospitais), mas a maior parte é gasto corrente, fortemente concentrada em benefícios previdenciários e assistenciais e gasto com pessoal da saúde e educação.” Além disso, há outras não vinculadas, mas também rígidas, como os dispêndios com pessoal fora das áreas de saúde e educação e os precatórios. “A única despesa com flexibilidade para ser cortada acaba sendo o investimento.”

Alguém poderá dizer que os gastos com juros são muito altos. Sem dúvida - as despesas financeiras do setor público consolidado totalizaram R$ 745,7 bilhões nos 12 meses até março, ou 6,76% do PIB. Mas, para reduzi-las sem voluntarismo, é fundamental reforçar a percepção de que as contas públicas são sustentáveis, o que passa pelo combate ao crescimento dos gastos. Um passo importante seria enfrentar as vinculações de despesas. Isso abriria espaço para o recuo mais forte da Selic e a queda dos juros de longo prazo, hoje acima de 6%, descontada a inflação, como indicam os títulos do Tesouro corrigidos pelo IPCA que vencem em 2045 e 2050. Com juros estruturalmente mais baixos, a dinâmica da dívida seria mais favorável, exigindo um esforço fiscal menor para estabilizar o nível de endividamento em relação ao PIB.

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