Valor Econômico
Instrumentalização política e fragilidade institucional colocam órgão de defesa da concorrência à deriva
Nos meus tempos de criança no interior de
Minas, creme dental era chamado de dentifrício - e isso rendeu muita gozação de
meus amigos quando me mudei para Belo Horizonte para fazer faculdade. (Décadas
depois, num supermercado na região do Douro, em Portugal, vi numa gôndola que
lá eles também usam a palavra dentifrício; estranha conexão linguística entre
povos da montanha dos dois lados do Atlântico.)
Na mesma época em que riam do meu modo de falar, nos anos 1990 muita gente se referia a creme dental simplesmente como Kolynos - exemplo clássico de metonímia, em que a liderança da marca é tão forte que o consumidor se refere a ela como sinônimo para o próprio produto. Mas em 1995 a Colgate, a segunda colocada do mercado, comprou a Kolynos, gerando uma concentração de 78% no mercado de cremes dentais.
O caso Colgate-Kolynos talvez tenha sido o
primeiro que chamou a atenção do Brasil para um órgão criado em 1962 e que por
três décadas havia se transformado em mero cartório para ratificação de atos de
fusão e aquisição de empresas: o Conselho Administrativo de Defesa Econômica
(Cade).
Com a adoção do Plano Real, porém, o governo
FHC resolveu incluir o combate ao abuso do poder de mercado como parte de sua
estratégia de guerra à hiperinflação, empoderando o conselho. Desde então,
vários casos de renome alçaram o Cade às manchetes dos jornais e até às
conversas de bar, principalmente depois da fusão entre Brahma e Antarctica
(1999) formando a Ambev, a novela sem fim da compra da Garoto pela Nestlé e a
formação da BRF com a integração da Sadia e da Perdigão, entre tantas outras
operações menos famosas.
O Cade também ganhou protagonismo no combate
a cartéis: ao condenar de postos de gasolina a grandes empreiteiras que
fraudaram licitações, o órgão de defesa da concorrência brasileiro passou a ser
respeitado no Brasil e no exterior.
Essa trajetória de sucesso, porém, não está
imune a críticas. Ainda durante a gestão de FHC, o Cade foi acusado de ter sido
leniente com práticas anticoncorrenciais que levaram a recém-privatizada Vale a
dominar o mercado de minério de ferro, assim como de acatar sem muita
resistência a política de campeões nacionais de Lula e Dilma que levaram à
formação de grandes conglomerados em diversos setores.
Esses temores de uma complacência do órgão de
defesa da concorrência com a visão desenvolvimentista do governo voltaram à
tona na semana passada. Na quarta, o Cade aceitou um pedido da Petrobras para
reconsiderar um acordo firmado em 2019 em que ela se obrigava a vender ativos
de refinaria e gasodutos para aumentar a competição no mercado de óleo e gás.
Acontece, porém, que a própria decisão de
2019 do Cade se deu sob a acusação de o órgão ter cedido à pressão do então
ministro Paulo Guedes para tentar, na marra, quebrar o domínio da Petrobras no
setor de combustíveis e, assim, forçar um “choque de preços de energia”.
Essa inconstância nas decisões tem origem em
algumas debilidades institucionais.
O órgão tem duas instâncias principais: a
Superintendência-Geral, que analisa os processos, e o Tribunal, que toma as
decisões. No entanto, há sete anos, esses órgãos vêm sendo comandados pelas
mesmas pessoas. Alexandre Barreto de Souza assumiu a presidência do Tribunal em
2017, tendo Alexandre Cordeiro Macedo como superintendente-geral. Ao fim dos
respectivos mandatos, eles trocaram de posição em 2021 e 2022, com Macedo
herdando a presidência do conselho julgador e Barreto passando a comandar a
instrução dos processos na Superintendência-Geral.
Além do personalismo, em que dois indivíduos
se apossaram dos postos de comando manobrando para permanecer no poder, há as
conexões políticas. Cordeiro Macedo já foi chamado de “meu menino” por ninguém
menos que Ciro Nogueira (PP-PI) e é visto como representante dos interesses do
Centrão na presidência do Cade.
Essa ingerência política na autoridade
antitruste brasileira é potencializada por outros dois problemas
institucionais. Ao contrário de muitas agências reguladoras, o Cade não possui
uma carreira própria - seus técnicos provêm de servidores cedidos de outros
órgãos ou são nomeados sem concurso público para cargos comissionados. Sem
poder contar com um corpo técnico especializado e com estabilidade, o risco de
assédio moral e captura por interesses políticos e privados aumenta
consideravelmente.
Além disso - e aqui as agências regulatórias
sofrem da mesma fragilidade - o Cade está dominado pelo fenômeno das portas
giratórias. Seus conselheiros, ao final do mandato, são geralmente contratados
a peso de ouro por escritórios de advocacia e, passada a quarentena, defendem
interesses de empresas com processos no órgão em que atuavam. Para muitos,
portanto, a indicação para um cargo no Cade é vista como mero trampolim
profissional, e não o exercício de uma missão de interesse coletivo.
Com suas competências comprometidas pelo
personalismo de seus dirigentes, forte influência política, falta de estrutura
de pessoal e interesses pessoais de seus integrantes, o Cade vem perdendo
protagonismo e caminha para voltar a ser uma repartição meramente carimbadora
de autorizações para fusões de empresas.
Perfeito.
ResponderExcluirExcelente! Bruno tem feito ótimas escolhas de temas para suas informativas e bem escritas colunas. Diferentemente de outros colunistas, bastante informação e menos opinião pessoal/ideológica. Gosto muito disto!
ResponderExcluirNo interior de São Paulo a gente chama creme dental de pasta de dente.
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