segunda-feira, 27 de maio de 2024

Bruno Carazza - Cadê o Cade que estava aqui?

Valor Econômico

Instrumentalização política e fragilidade institucional colocam órgão de defesa da concorrência à deriva

Nos meus tempos de criança no interior de Minas, creme dental era chamado de dentifrício - e isso rendeu muita gozação de meus amigos quando me mudei para Belo Horizonte para fazer faculdade. (Décadas depois, num supermercado na região do Douro, em Portugal, vi numa gôndola que lá eles também usam a palavra dentifrício; estranha conexão linguística entre povos da montanha dos dois lados do Atlântico.)

Na mesma época em que riam do meu modo de falar, nos anos 1990 muita gente se referia a creme dental simplesmente como Kolynos - exemplo clássico de metonímia, em que a liderança da marca é tão forte que o consumidor se refere a ela como sinônimo para o próprio produto. Mas em 1995 a Colgate, a segunda colocada do mercado, comprou a Kolynos, gerando uma concentração de 78% no mercado de cremes dentais.

O caso Colgate-Kolynos talvez tenha sido o primeiro que chamou a atenção do Brasil para um órgão criado em 1962 e que por três décadas havia se transformado em mero cartório para ratificação de atos de fusão e aquisição de empresas: o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Com a adoção do Plano Real, porém, o governo FHC resolveu incluir o combate ao abuso do poder de mercado como parte de sua estratégia de guerra à hiperinflação, empoderando o conselho. Desde então, vários casos de renome alçaram o Cade às manchetes dos jornais e até às conversas de bar, principalmente depois da fusão entre Brahma e Antarctica (1999) formando a Ambev, a novela sem fim da compra da Garoto pela Nestlé e a formação da BRF com a integração da Sadia e da Perdigão, entre tantas outras operações menos famosas.

O Cade também ganhou protagonismo no combate a cartéis: ao condenar de postos de gasolina a grandes empreiteiras que fraudaram licitações, o órgão de defesa da concorrência brasileiro passou a ser respeitado no Brasil e no exterior.

Essa trajetória de sucesso, porém, não está imune a críticas. Ainda durante a gestão de FHC, o Cade foi acusado de ter sido leniente com práticas anticoncorrenciais que levaram a recém-privatizada Vale a dominar o mercado de minério de ferro, assim como de acatar sem muita resistência a política de campeões nacionais de Lula e Dilma que levaram à formação de grandes conglomerados em diversos setores.

Esses temores de uma complacência do órgão de defesa da concorrência com a visão desenvolvimentista do governo voltaram à tona na semana passada. Na quarta, o Cade aceitou um pedido da Petrobras para reconsiderar um acordo firmado em 2019 em que ela se obrigava a vender ativos de refinaria e gasodutos para aumentar a competição no mercado de óleo e gás.

Acontece, porém, que a própria decisão de 2019 do Cade se deu sob a acusação de o órgão ter cedido à pressão do então ministro Paulo Guedes para tentar, na marra, quebrar o domínio da Petrobras no setor de combustíveis e, assim, forçar um “choque de preços de energia”.

Essa inconstância nas decisões tem origem em algumas debilidades institucionais.

O órgão tem duas instâncias principais: a Superintendência-Geral, que analisa os processos, e o Tribunal, que toma as decisões. No entanto, há sete anos, esses órgãos vêm sendo comandados pelas mesmas pessoas. Alexandre Barreto de Souza assumiu a presidência do Tribunal em 2017, tendo Alexandre Cordeiro Macedo como superintendente-geral. Ao fim dos respectivos mandatos, eles trocaram de posição em 2021 e 2022, com Macedo herdando a presidência do conselho julgador e Barreto passando a comandar a instrução dos processos na Superintendência-Geral.

Além do personalismo, em que dois indivíduos se apossaram dos postos de comando manobrando para permanecer no poder, há as conexões políticas. Cordeiro Macedo já foi chamado de “meu menino” por ninguém menos que Ciro Nogueira (PP-PI) e é visto como representante dos interesses do Centrão na presidência do Cade.

Essa ingerência política na autoridade antitruste brasileira é potencializada por outros dois problemas institucionais. Ao contrário de muitas agências reguladoras, o Cade não possui uma carreira própria - seus técnicos provêm de servidores cedidos de outros órgãos ou são nomeados sem concurso público para cargos comissionados. Sem poder contar com um corpo técnico especializado e com estabilidade, o risco de assédio moral e captura por interesses políticos e privados aumenta consideravelmente.

Além disso - e aqui as agências regulatórias sofrem da mesma fragilidade - o Cade está dominado pelo fenômeno das portas giratórias. Seus conselheiros, ao final do mandato, são geralmente contratados a peso de ouro por escritórios de advocacia e, passada a quarentena, defendem interesses de empresas com processos no órgão em que atuavam. Para muitos, portanto, a indicação para um cargo no Cade é vista como mero trampolim profissional, e não o exercício de uma missão de interesse coletivo.

Com suas competências comprometidas pelo personalismo de seus dirigentes, forte influência política, falta de estrutura de pessoal e interesses pessoais de seus integrantes, o Cade vem perdendo protagonismo e caminha para voltar a ser uma repartição meramente carimbadora de autorizações para fusões de empresas.

3 comentários:

  1. Excelente! Bruno tem feito ótimas escolhas de temas para suas informativas e bem escritas colunas. Diferentemente de outros colunistas, bastante informação e menos opinião pessoal/ideológica. Gosto muito disto!

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  2. No interior de São Paulo a gente chama creme dental de pasta de dente.

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