sexta-feira, 14 de junho de 2024

André Roncaglia - Adeus a Maria da Conceição Tavares

Folha de S. Paulo

Seu legado nos desafia a buscarmos sempre fugir dos lugares-comuns

Maria da Conceição Tavares nos deixou no último sábado (8), aos 94 anos de idade. Pensadora original e professora admirada, Conceição respirava política e bravejava contra as injustiças sociais. Intelectual pública de língua afiada, fugiu da ditadura de Salazar, em Portugal, para cair nos porões da ditadura militar brasileira. Viu renascer a democracia formal, elegeu-se deputada federal e nos deixou a tarefa de construir a democracia multirracial brasileira, ainda tão distante.

Seu curso de economia política em 1992 se tornou referência popular na internet, pela erudição ácida e impactante de suas tiradas, as quais anteciparam em décadas a "lacração" das redes antissociais.

Conceição integrou os quadros do BNDE (1958-1960) e da Cepal (1961-1974) e foi fundadora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-graduação em Economia na Universidade de Campinas (1973), onde ajudou a formar o pensamento desenvolvimentista da "escola de Campinas".

Paulo Robilloti mapeou, com profundidade analítica e contextual, as contribuições de Conceição em "O desenvolvimento capitalista na obra de Maria da Conceição Tavares" (Unicamp 2016). Três momentos marcam seu pensamento: a fase cepalina (1963-1972), a fase do desenvolvimento capitalista no Brasil (1973-1985) e a fase da economia política internacional (1985-2024). Destaco duas de suas teses.

Em contraposição à tese de Celso Furtado, que previa estagnação econômica no regime militar devido à exclusão das massas do consumo —via arrocho salarial—, Tavares mostrou que a desigualdade de renda e de riqueza poderia produzir intenso dinamismo econômico. O consumo conspícuo da classe média emergente, anabolizado pelo crédito ao consumidor, sustentava os setores de bens de consumo duráveis, como automóveis e eletrodomésticos. Escrito em parceria com José Serra, o artigo "Além da estagnação" (1972) se tornou um clássico da historiografia econômica brasileira.

Nos anos 1980, Conceição avança para economia política internacional, buscando compreender como os EUA reagiam à contestação de sua hegemonia tecnológica, militar e econômica.

O artigo "A retomada da hegemonia americana" (1985) mostra que, em vez de viver uma crise, a hegemonia dos EUA se reorganizava e se reafirmava com a "política do dólar forte", o "choque de juros" de Paul Volcker (presidente do Fed) em 1979, bem como a "diplomacia das armas", por meio do programa de governo conhecido como Guerra nas Estrelas. Devido à sua precisão e presciência, a tese obteve razoável consenso a partir dos anos 1990.

Na revista "Cadernos do Desenvolvimento", do Centro Internacional Celso Furtado, Carla Curty (2023) sugere que o pioneirismo e a originalidade da análise de Conceição sobre as "relações de coerção e consenso entre os EUA e o resto do mundo" se devia à perspectiva latino-americana da autora sobre os eventos. Afinal, à época, a região estava imersa em uma significativa crise (da dívida externa), sentindo diretamente as ações e consequências dessa "retomada da hegemonia dos EUA" nos anos 1980.

Como lembrou Ricardo Bielschowsky, a "poderosa combinação entre criatividade e rebeldia" de Conceição obriga todo mundo a "pensar grande". Seu legado permanece vivo nas mentes de colegas e estudantes de economia, sempre nos desafiando a fugir dos lugares-comuns.

John Maynard Keynes disse, certa vez, que o mundo é governado por ideias de economistas defuntos de tempos atrás. Repetidos à exaustão, conceitos e teses se tornam familiares, a ponto da obviedade. Conceição logrou esse efeito em vida e, com sua passagem, ascende ao panteão de economistas mais influentes do Brasil.

À mestra, ficam nosso carinho e nossa admiração. Descanse em paz!

 

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