Valor Econômico
Passado bate à porta provocando reflexão sobre o presente e o futuro
Na era da velocidade, do instantâneo Instagram, do conciso X (o ex-Twitter), quando tudo soa efêmero, o passado bate à porta provocando uma reflexão sobre o presente e o futuro. Por isso, a estreia há poucos dias do documentário “Entreatos”, de João Moreira Salles, na grade da Netflix nos desafia a apertar a tecla “stop” e olhar para trás, para o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva na iminência de vencer a eleição para a Presidência da República em 2002. Para compreender o Lula de 2024 é importante não esquecer o Lula de 22 anos atrás.
O filme chega ao streaming ao completar 20
anos, porque embora rodado nos últimos 40 dias da campanha presidencial, só foi
lançado em 2004. As cenas de bastidores registradas por Salles e pelo diretor
de fotografia Walter Carvalho provocam nostalgia ao mostrar o petista com ar
jovial, a cabeleira ainda preta e farta e uma cigarrilha quase sempre entre os
dedos. Vício abandonado após o câncer na laringe, que minou a potência de sua
voz - uma de suas armas mais poderosas na política.
Em uma cena que dialoga com os dias atuais,
Lula admite que, de vez em quando, fala demais. Durante um voo rumo a um
comício em Porto Alegre (RS), o petista comenta que diante da perspectiva real
de vencer o pleito, deveria ser mais responsável com as palavras. “É que você
tem que medir cada palavra (...) você fica se policiando”, lamentou. “Eu
deveria me mancar e parar de falar, mas eu não paro de falar”, reconheceu.
No mesmo trecho, Luiz Dulci (que seria
ministro da Secretaria-Geral) observa que Lula é um “improvisador nato”.
Justamente, uma das características que mais afligem alguns aliados até hoje
pelo potencial de danos. Recentemente, uma ala do governo avaliou que Lula
excedeu-se nas críticas ao presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos
Neto, ao ponto de agravar uma crise que ensejou a alta recorde do dólar e mais
instabilidade na economia.
A leitura é que a crítica à autoridade
monetária era pertinente - até pelo flerte com o governador de São Paulo,
Tarcísio de Freitas (Republicanos) - mas Lula exagerou no tom. Nesse contexto,
vem à memória a relação de sintonia fina entre o petista e Henrique Meirelles,
que presidiu o Banco Central nos oito anos de seus dois primeiros mandatos.
Em 2003, no início do governo, o Banco
Central, sob Meirelles, elevou a taxa Selic de 25% para 25,5% ao ano, em meio
ao severo ajuste fiscal com o qual Lula havia se comprometido. Não houve sequer
ruído entre Lula e Meirelles. Ainda hoje, Lula diz aos interlocutores que
Meirelles foi um de seus aliados mais leais. Inclusive, Lula assinará o
prefácio do livro de memórias do ex-aliado que está no prelo.
Na última semana, Meirelles declarou que Lula
lhe deu “autonomia de fato” para comandar o BC. Mas defendeu a autonomia legal
da instituição, argumentando ser impossível assegurar que o pacto firmado entre
ele e o petista seja cumprido por todos.
Em outra passagem do documentário, o então
presidente do PT, José Dirceu (que seria o poderoso chefe da Casa Civil) refuta
reportagem que o apresentara como o homem que fazia a cabeça de Lula. “Quem fez
a minha cabeça foi o Lula”, retrucou. No filme, desfilam quadros do PT que,
naquele tempo, eram conselheiros a quem, efetivamente, Lula dava ouvidos:
Antonio Palocci, Luiz Dulci, Gilberto Carvalho, Luiz Gushiken (morto em 2013),
Aloizio Mercadante, além de Dirceu.
Mais de duas décadas depois, Dirceu foi
preso, condenado no mensalão e na Lava-Jato, mas está em fase de reabilitação
política, embora afastado de Lula. Palocci também foi preso e condenado na
Lava-Jato, mas vive no ostracismo, após a delação explosiva em que comprometeu
Lula - anos depois, invalidada pelo Supremo Tribunal Federal.
Gilberto Carvalho segue no governo, embora
longe do Palácio do Planalto. Luiz Dulci deixou a política, e apenas Mercadante
segue próximo de Lula, hoje na presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES).
No entorno de Lula, a avaliação é que,
atualmente, ninguém “faz a cabeça” do presidente porque ele retornou ao poder
com postura “imperial”. Como se em 2003, os companheiros da fundação do PT
tivessem subido a rampa ao seu lado, mas em 2023, ele tivesse percorrido o
trajeto sozinho, consumido pelo sentimento de que após os processos e de um ano
e sete meses na prisão, a terceira vitória viesse apenas de sua resiliência e
capital político.
Em outro trecho, Lula é questionado se não
sente falta de estar sozinho. Ele, então, classifica como “vício” seu apreço
por estar sempre cercado de “agitação”, de “muita gente”. Declaração que, duas
décadas depois, sugere a dimensão da angústia e sofrimento por que passou nos
580 dias de privação de liberdade em Curitiba.
De volta ao presente, vem à tona a visita que
Lula fez nessa segunda-feira ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Por isso, vale citar a cena em que Lula faz troça do ex-adversário. Diante da
perspectiva de vitória, ele diz que montará um gol para “peladas” no gramado do
Palácio da Alvorada, e ironiza o tucano. “Ele não joga bola, não dança, não
bebe um gole... Eu vou levar os meus cabritinhos para colocar lá”, gracejou.
“Para correr atrás das emas”, emendou um interlocutor.
"uma cigarrilha quase sempre entre os dedos. Vício abandonado após o CÂNCER na laringe" - e vários colunistas dizem que Lula nada aprendeu...
ResponderExcluirQuem aprende pouco são nossos jovens, que continuam viciados em tabaco OU substituem o cigarro comum pelos ainda mais viciantes e maléficos CIGARROS ELETRÔNICOS.
Brilhante análise da colunista.
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