O Globo
Dona de casa virou ativista após
desaparecimento do filho, vítima da ditadura argentina
Gustavo saiu cedo de casa, como fazia todos
os dias, e não voltou mais. Tinha 24 anos, mulher e filho pequeno. “Ele foi
sequestrado em 15 de abril de 1977”, repetia sua mãe, Nora Cortiñas. “Muitos
anos depois, ficamos sabendo que o pegaram na estação Castelar, onde esperava o
trem para o trabalho.”
Na manhã seguinte, ela começou uma peregrinação por igrejas, delegacias, tribunais. Desesperada, abandonou a vida doméstica e se juntou a outras mulheres que desafiavam a ditadura argentina em busca de seus filhos. Assim nascia o movimento das Mães da Praça de Maio.
“No primeiro dia, éramos poucas e estávamos
tomadas pelo medo e pela angústia. Enquanto buscávamos o paradeiro de nossos
filhos, íamos encontrando mulheres e homens na mesma situação”, relembrou,
tempos depois. “O que nos unia não eram opiniões políticas nem crenças
religiosas. Eram a tragédia e a busca incansável.”
No início, as mães se concentravam diante da
Casa Rosada. Quando o movimento ganhou corpo, a polícia resolveu proibir as
reuniões. “Diziam que o país estava sob estado de sítio, por isso não podíamos
ficar ali paradas. Então começamos a caminhar”, contou Norita, em depoimento à
Biblioteca Nacional. A caminhada em círculos, no centro da praça, virou marca
das madres. O ritual se repete até hoje, todas as quintas-feiras.
“Por muitos anos, as pessoas passavam pela
praça e não olhavam para nós. Era como se fôssemos invisíveis”, recordou
Norita. “Ninguém se aproximava para perguntar o que estávamos fazendo ali. Isso
é mais um produto do terrorismo de Estado: o medo.”
Apesar das ameaças, as mães amarraram seus
lenços brancos e foram à luta. O sequestro da fundadora Azucena Villaflor,
torturada e arrastada pelos militares para um “voo da morte”, não desmobilizou
o grupo. Norita foi escalada para levar as denúncias ao exterior. Viajou do
Japão ao Saara Ocidental, do Curdistão ao Haiti. Nos últimos anos, passou a
empilhar títulos de doutora honoris causa em direitos humanos.
Nada mais inesperado para uma mulher nascida
em 1930 num lar conservador da classe média portenha. “Quando era pequena,
sonhava com princesas, em levar meus filhos ao carrossel. Não era uma
revolucionária como hoje”, brincava. “Meu marido era um homem patriarcal.
Queria que eu me dedicasse à vida familiar”. Impedida de trabalhar fora, ela
recebia moças em casa para dar aulas de costura. “Vivia tudo naturalmente, como
meus pais haviam ensinado”, contava.
O desaparecimento de Gustavo, que militava na
Juventude Peronista e atuava no trabalho de base em favelas, fez a mãe
despertar para a política. “Perder um filho é sempre uma tragédia. Mas você
precisa enfrentá-la para não ficar presa no labirinto e poder ajudar quem está
na mesma situação. A solidão não é uma boa receita para quem quer saber a
verdade”, dizia.
Quando as madres se dividiram, na década de
1980, ela liderou a dissidência Linha Fundadora, que defendia a independência
crítica diante de todos os governos. “Nossa reivindicação não agrada a muitos
políticos, à Igreja, aos militares e aos que têm histórico de cumplicidades”,
justificava. Nos últimos meses, sua indignação se voltou contra Javier Milei,
presidente de ultradireita que relativiza os crimes da ditadura argentina.
Apesar da persistência, Norita nunca
conseguiu saber onde, como e quando o filho foi morto. Incansável, ela militou
até os 94 anos. Morreu na quinta-feira, dia de caminhada na Praça de Maio.
Que pena!
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