sábado, 22 de junho de 2024

Carlos Alberto Sardenberg - Haddad e Lula são liberais?

O Globo

O fisiologismo de direita e de esquerda adora usar dinheiro público para beneficiar negócios amigos

Era só o que faltava: o ministro Fernando Haddad tornar-se um liberal e carregar Lula nessa virada. Pode parecer provocação, mas não é. Quer dizer, é um pouco. Mas faz sentido.

Tem a ver com os tais gastos tributários — dinheiro que o governo deixa de arrecadar ao isentar ou reduzir impostos devidos por empresas e cidadãos. Neste ano, chegam a R$ 524 bilhões, ou 4,5% do PIB — valor que surpreendeu o presidente, como ele mesmo confessou. Obviamente, Lula não se inteirou nem dos pontos principais do Orçamento que ele mesmo assinou. Pois os bilhões estão lá relacionados e comentados pela Receita Federal, que vive procurando maneiras de conter esses gastos.

Tais gastos vêm sendo criados desde o governo Lula 1. Isso mesmo, desde 2003 e seguindo pelas gestões petistas. Para simplificar: no primeiro ano do primeiro governo petista, os incentivos tributários — incentivo para quem recebe, gasto para o governo — custavam em torno de R$ 27 bilhões, menos de 2% do PIB do período. No final do primeiro mandato de Dilma, 2014, os gastos tributários alcançavam R$ 277 bilhões, já perto de 5% do PIB daquele ano.

É de estranhar que Lula não saiba disso. Não é de estranhar que os incentivos tenham crescido tanto — mais de 3 pontos percentuais do PIB —nos três primeiros governos petistas. O nacional-desenvolvimentismo do PT recomenda conceder vantagens a empresas selecionadas —isenções tributárias, proteção contra importações, créditos subsidiados, tudo com dinheiro público. Espera-se que essas companhias cresçam e gerem empregos. Lembram a política dos campeões nacionais? 

Os liberais, clássicos e ortodoxos — neoliberais também, se quiserem —, entendem que, como regra, não se devem conceder tais benefícios. Acham que distorcem os mercados, dão vantagens indevidas a empresas amigas do governo (fonte de corrupção), acabam com a livre concorrência e, no final, beneficiam apenas as empresas e seus donos (os ricos), sem gerar desenvolvimento para toda a população.

Não foi isso mesmo que Lula andou dizendo nesta semana?

— A gente discutindo corte de R$ 10 bilhões, R$ 15 bilhões aqui e, de repente, você descobre que tem R$ 524 bilhões de benefício fiscal para os ricos neste país, como é possível?

Sabem quem queria cortar incentivos? O liberal Paulo Guedes.

Não se pode dizer que os governos petistas sejam responsáveis por esse caminhão de gastos tributários. O fisiologismo de direita e de esquerda adora usar dinheiro público para beneficiar negócios amigos. Forma-se, assim, uma aliança. A ideologia nacional-desenvolvimentista dá a base teórica, o fisiologismo se esbalda. Isso explica por que o petismo, o Centrão e certa direita se acomodam alegremente no governo Lula. Por razões diversas, querem as mesmas coisas — usar dinheiro público em benefício de seus projetos políticos e pessoais.

Vai daí a dificuldade de cortar os gastos tributários. Quem passará a tesoura nos R$ 130 bilhões de isenções do Simples Nacional, regime especial para pequenas e médias empresas? É o maior pedaço do gasto tributário. Tem também a Zona Franca de Manaus, cujas empresas receberão neste ano R$ 32 bilhões em isenções. Há décadas nenhum governo consegue mexer nisso.

E a indústria automobilística, incentivada com dinheiro público desde os anos 1960, que continua reclamando mais proteção? Aliás, acaba de levar mais um programa de incentivo, o Mover, articulado pelo vice-presidente Alckmin. As empresas que investirem em veículos verdes ou híbridos levarão incentivos fiscais de R$ 19,3 bilhões, deste ano até 2029.

Boa parte da política ambiental se baseia na concessão de vantagens especiais. Nesta semana, o Senado aprovou um Projeto de Lei que cria incentivos tributários para os produtores de hidrogênio verde. A renúncia fiscal do governo federal alcançará R$ 18,3 bilhões entre 2028 e 2032.

Tudo considerado, esse piscar de Haddad e Lula para uma tese liberal é apenas um modo de fugir do problema real: não conseguem cortar os gastos gerais.


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