O Globo
Em sua posse no TSE, ela navegou pelos mares
tempestuosos da subjetividade
‘O algoritmo do ódio, invisível e presente,
senta-se à mesa de todos. Ódio e violência não são gratuitos. Instigados por
mentiras e vilanias, reproduzem-se e parecem intransponíveis. Não são: contra o
vírus da mentira, há o remédio eficaz da liberdade de informação séria e
responsável. A raiva desumana que se dissemina produzindo guerras entre pessoas
e entre nações tem preço — e o preço pago por ceder ao medo e aos ódios é a
nossa liberdade mesma.’
Em seu discurso de posse na presidência do TSE, a ministra Cármen Lúcia declarou guerra ao ódio e à mentira. Prometeu, por meio dessa guerra, preservar “nossa liberdade”. Fosse o editorial de um jornal destinado a exaltar o valor da imprensa profissional na era das redes sociais, pouco haveria a corrigir (a raiva é muito humana e, talvez, exclusivamente humana — e não é ela a causa das guerras entre nações). Mas, como programa de ação dos juízes eleitorais em ano de eleições municipais, deve ser classificado como ideia (perigosa) fora de lugar.
Verdade e mentira só são relativamente fáceis
de distinguir na esfera factual. Mesmo assim, os juízes eleitorais precisariam
exercitar autocontenção: o que fazer quando Lula atribui as investigações da
Lava-Jato a um comando do Departamento de Justiça dos Estados Unidos? Na esfera
do discurso político, tudo depende dos pressupostos — da visão de mundo que
informa o sujeito de fala.
Bolsonaro clamava defender a “liberdade dos
brasileiros” ao atacar as instituições democráticas. Sob o ponto de vista da
extrema direita, liberdade e democracia são conceitos antagônicos. Lula
proclamou, vezes sem conta, que há “democracia demais” na Venezuela. Sob o
ponto de vista de certas correntes da esquerda, a democracia representativa não
passa de democracia falsa, porque “burguesa”. Em sua guerra pela verdade,
Cármen pretende impugnar a mentira política?
O princípio constitucional da liberdade de
expressão não foi mencionado pela guerreira Cármen. Em seu lugar, emergiu a
liberdade de informação, que não é a mesma coisa. E ainda adjetivada: apenas a
“séria e responsável”. Quem decide sobre o cumprimento de tais requisitos? Na
ditadura militar, era a Divisão de Censura da PF. O TSE pretende assumir as
funções do órgão extinto?
A lei exige definições objetivas, precisas. A
liberdade de expressão não é um direito absoluto. Seus limites legais estão
delineados pela proibição à conclamação direta à violência contra indivíduos,
grupos sociais ou instituições e, ainda, pela criminalização da calúnia, da
injúria e da difamação. Mas, em sua posse, Cármen navegou pelos mares
tempestuosos da subjetividade, expressa nos adjetivos e, especialmente, no
substantivo “ódio”. A guerra contra o ódio não figura na lei. Com que
ferramentas a juíza travará seu combate virtuoso?
O discurso político manipula, desde sempre, a
retórica do antagonismo: “nós” contra “eles”. O conservadorismo atribui a
“eles” uma coleção de vícios que contaminam a sociedade. O populismo reivindica
falar em nome do Povo (assim, com maiúscula), contra uma Elite (maiúscula,
também) desalmada. Há “ódio” nessas retóricas clássicas? Guerra contra a
“mentira” e o “ódio”. O que faria a Cármen de hoje diante da peça publicitária
petista de 2014 em que Marina Silva foi
graficamente acusada de retirar a comida da mesa dos pobres?
“A mentira é um insulto à dignidade do ser
humano, um obstáculo para o exercício pleno das liberdades, um desaforo
tirânico contra a integridade das democracias.” A passagem central do discurso
de posse eleva a mentira à condição de inimigo existencial da democracia,
descortinando uma latitude quase ilimitada para a ação judicial do TSE.
Mas a mentira é tão antiga quanto a política.
As plataformas de redes sociais simplesmente aceleraram sua disseminação. O
Brasil carece de legislação reguladora das redes, pois a Câmara engavetou um
projeto de lei salpicado de temerárias imprecisões. Com base em que lei a
presidente do TSE conduzirá suas batalhas pela verdade? Cármen vai à guerra sem
mapas ou GPS, armada apenas de sua santa indignação. Não é um bom plano.
Perfeito !
ResponderExcluirSei.
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