Folha de S. Paulo
Política lidera intenções de voto porque
desistiu do extremismo
"Os herdeiros políticos de Vichy chegam
ao governo francês" —eis uma manchete sensacionalista possível para, caso
se confirmem as pesquisas, sintetizar o resultado das eleições parlamentares
antecipadas que começam neste domingo (30/6). Nas sondagens, a Reunião Nacional
(RN), de Marine Le Pen,
tem 36% das intenções de voto, contra 28% para a Nova Frente Popular, de
esquerda, e apenas 22% para os centristas liderados por Macron. Contudo, seja
qual for o veredito das urnas, a manchete precisa é outra: a que intitula esta
coluna.
Partidos não mudam seu nome por acaso. A RN nasceu em 1972, como Frente Nacional (FN), sob o comando do pai de Marine, Jean-Marie. O líder admirava o general Pétain, que governou, como colaboracionista, a parte da França não ocupada pela Alemanha nazista. Marine assumiu o controle do partido em 2011 e expeliu seu pai em 2015, reagindo a elogios a Pétain e à classificação das câmaras de gás como um "detalhe" histórico. A troca de nome veio em 2018.
O jornalismo continua a qualificar a RN como
"extrema direita" ou "ultradireita". É um erro analítico
grave, que decorre de preguiça intelectual ou vontade de externar um repúdio
moral (ou da mistura de ambos), tornando inexplicável sua ascensão eleitoral.
Extremistas buscam destruir as instituições políticas. Le Pen ocupa o primeiro
lugar nas intenções de voto justamente porque desistiu do extremismo,
refundando a RN como partido da direita nacionalista.
Quase tudo mudou no programa partidário.
Desapareceu a hostilidade à União Europeia. Le Pen tomou alguma distância de
Putin, tentando revisar suas declarações de 2017, quando afirmou que
compartilhava dos "mesmos valores" do autocrata russo. Mesmo a
xenofobia e a islamofobia, marcas principais do partido, foram amainadas: no
lugar da deportação em massa de imigrantes árabes e africanos, a RN passou a
pregar limites estritos para o ingresso de migrantes.
Mas, sobretudo, a RN posicionou-se como
"direita patriótica", ocupando o espaço antes dominado pelos
gaullistas, que representavam o conservadorismo tradicional francês. A
estratégia de reposicionamento provocou cisões e expurgos, consolidando-se num
texto de Le Pen publicado em 2020 e consagrado a homenagear De Gaulle. No ano
seguinte, a líder da direita nacionalista aproveitou o aniversário da morte do
general para depositar flores aos pés da Cruz de Lorraine, na praia da
Normandia onde De Gaulle pisou o solo francês em junho de 1944.
Fora Vichy, viva a "França eterna"
do líder da resistência. O giro radical deu frutos, abrindo a via para uma
incursão decisiva no eleitorado gaullista. O partido gaullista (Os
Republicanos) desabou de 22% dos votos nas eleições parlamentares de 2017 para
7% em 2022, enquanto a RN saltava de 13% para 19%. Há pouco, o presidente dos
Republicanos anunciou uma aliança com a RN, rompendo a política do "cordão
sanitário", pela qual a direita tradicional prometia isolar Le Pen. A
declaração deflagrou uma crise interna, mas foi seguida por expressiva minoria
dos candidatos gaullistas.
Na economia, a RN ostenta programa similar ao
da esquerda reunida na Frente Popular: quebrar a banca. São árvores de Natal
que empilham redução de taxas sobre energia, aumentos de salários e redução de
idade de aposentadoria, elevando o déficit público para perto de 7% do PIB.
Algo como uma Gleisi no posto de Haddad.
Na política externa, um triunfo da RN seria
celebrado por Trump e por Putin. Não que Le Pen ofereça apoio à Rússia na sua
aventura ucraniana. É que, de certo modo, repetindo De Gaulle em contexto
diferente, ela enxerga a Rússia como contrapeso à influência dos EUA na Europa.
Anos atrás, proclamou que o triângulo formado por Trump, Putin e ela mesma
inauguraria uma "nova ordem mundial". Bolsonaro deve gostar de tudo
isso. Lula, só da parte de Putin.
Ave Maria!
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