O Globo
O papel da sociedade poderia ser estendido a
discussões mais áridas, como a qualidade dos gastos do governo
A reação social a dois projetos, sobre aborto
e praias, abre caminho para alguns ensinamentos. O primeiro deles, e mais
óbvio, revela que as pessoas não querem retrocesso, sobretudo os que podem nos
fazer voltar à Idade Média, sem algumas qualidades daquela fase histórica.
Isso acende um sinal amarelo para as forças
conservadoras, sobretudo as que investem contra o Estado laico e querem
substituir a Constituição pela Bíblia.
Creio que o campo oposto, o governista, também tem material para refletir sobre o que se passou nas últimas semanas. Talvez tenha de rever a ideia de que o foco único de seu esforço seja a economia. Alguns especialistas em eleições repetem a frase: “É a economia, estúpido”. E muitos acreditaram que tudo realmente se resume à economia, ou que as pessoas são apenas fisiológicas, como alguns políticos que as representam.
Numa volumosa pesquisa feita pela
Universidade de Oxford na Europa, no fim do século XX, foi possível produzir um
tomo chamado “O impacto dos valores”. Em 1995 já havia expectativa de mudança
de valores, derivada da sensação de segurança econômica e física experimentada
nos anos do Pós-Guerra. Essa mudança apontava para o declínio da preocupação
material que sempre esteve no centro dos conflitos, abrindo caminho a uma
sociedade mais impessoal, participativa, valorizando autoexpressão e estética.
As coisas mudaram, a Europa hoje vive certa
insegurança, marcada pelo avanço da extrema direita e uma reação ao processo
migratório. Mas a vertente pós-material não desapareceu no Ocidente e,
fragmentariamente, também existe em sociedades complexas como a brasileira.
A visão de um mundo dominado pelo conflito de
classes, e só por ele, já não corresponde a toda a realidade. Da mesma forma, a
suposição de que um governo, e só ele, apenas o próprio presidente, é
responsável por fazer as coisas andarem é muito precária. Às vezes, a
autoestima do próprio governante produz promessas do tipo “vou trazer a
felicidade” e involuntariamente exclui o papel da própria sociedade.
O que aconteceu nas últimas semanas mostra
que o papel da sociedade é essencial e poderia ser estendido também a
discussões mais áridas, como a qualidade dos gastos do governo.
Um debate eleitoral centrado em valores
favorece a direita que trabalha com o medo e o fato real de que a maioria tende
a uma posição conservadora. Mas isso não significa que todas as suas propostas,
sobretudo as que implicam retrocesso, sejam aceitas. A compreensão desses fatos
pode animar os deputados que se sentem em minoria, mas descobrem que há uma
força latente na sociedade capaz de ajudá-los.
Acho necessário criar uma barreira social
para todos os absurdos produzidos no Congresso. Alguns passam batidos, como o
perdão para os partidos. Eles criam regras, anistiam-se a si próprios e querem
pagar as multas com dinheiro público. É fantástica a sensação de onipotência.
Esses fatos, mesmo sem oposição ruidosa na sociedade, acabam contribuindo para
acumular revolta.
A vantagem das reações pontuais é corrigir o
rumo no cotidiano. Se as coisas seguem sem controle, o Parlamento vai ao
limite, e a reação social acaba explodindo em algum momento, como aconteceu em
2013. Em horas como essas, alguns desavisados se perguntam:
— Todo esse barulho por causa de 20 centavos?
Vinte centavos no transporte público, ou
qualquer outra pequena fagulha, bastam para incendiar o circo.
Se a sociedade vigiar um pouco mais não só o
que se passa com deputados, mas também essa história dos gastos do governo,
evitará situações extremas. Entregues a si próprios, os políticos tendem a
caminhar para o abismo.
É mais forte que eles.
Verdade.
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