segunda-feira, 24 de junho de 2024

Fernando Gabeira - Limites da paciência popular

O Globo

O papel da sociedade poderia ser estendido a discussões mais áridas, como a qualidade dos gastos do governo

A reação social a dois projetos, sobre aborto e praias, abre caminho para alguns ensinamentos. O primeiro deles, e mais óbvio, revela que as pessoas não querem retrocesso, sobretudo os que podem nos fazer voltar à Idade Média, sem algumas qualidades daquela fase histórica.

Isso acende um sinal amarelo para as forças conservadoras, sobretudo as que investem contra o Estado laico e querem substituir a Constituição pela Bíblia.

Creio que o campo oposto, o governista, também tem material para refletir sobre o que se passou nas últimas semanas. Talvez tenha de rever a ideia de que o foco único de seu esforço seja a economia. Alguns especialistas em eleições repetem a frase: “É a economia, estúpido”. E muitos acreditaram que tudo realmente se resume à economia, ou que as pessoas são apenas fisiológicas, como alguns políticos que as representam.

Numa volumosa pesquisa feita pela Universidade de Oxford na Europa, no fim do século XX, foi possível produzir um tomo chamado “O impacto dos valores”. Em 1995 já havia expectativa de mudança de valores, derivada da sensação de segurança econômica e física experimentada nos anos do Pós-Guerra. Essa mudança apontava para o declínio da preocupação material que sempre esteve no centro dos conflitos, abrindo caminho a uma sociedade mais impessoal, participativa, valorizando autoexpressão e estética.

As coisas mudaram, a Europa hoje vive certa insegurança, marcada pelo avanço da extrema direita e uma reação ao processo migratório. Mas a vertente pós-material não desapareceu no Ocidente e, fragmentariamente, também existe em sociedades complexas como a brasileira.

A visão de um mundo dominado pelo conflito de classes, e só por ele, já não corresponde a toda a realidade. Da mesma forma, a suposição de que um governo, e só ele, apenas o próprio presidente, é responsável por fazer as coisas andarem é muito precária. Às vezes, a autoestima do próprio governante produz promessas do tipo “vou trazer a felicidade” e involuntariamente exclui o papel da própria sociedade.

O que aconteceu nas últimas semanas mostra que o papel da sociedade é essencial e poderia ser estendido também a discussões mais áridas, como a qualidade dos gastos do governo.

Um debate eleitoral centrado em valores favorece a direita que trabalha com o medo e o fato real de que a maioria tende a uma posição conservadora. Mas isso não significa que todas as suas propostas, sobretudo as que implicam retrocesso, sejam aceitas. A compreensão desses fatos pode animar os deputados que se sentem em minoria, mas descobrem que há uma força latente na sociedade capaz de ajudá-los.

Acho necessário criar uma barreira social para todos os absurdos produzidos no Congresso. Alguns passam batidos, como o perdão para os partidos. Eles criam regras, anistiam-se a si próprios e querem pagar as multas com dinheiro público. É fantástica a sensação de onipotência. Esses fatos, mesmo sem oposição ruidosa na sociedade, acabam contribuindo para acumular revolta.

A vantagem das reações pontuais é corrigir o rumo no cotidiano. Se as coisas seguem sem controle, o Parlamento vai ao limite, e a reação social acaba explodindo em algum momento, como aconteceu em 2013. Em horas como essas, alguns desavisados se perguntam:

— Todo esse barulho por causa de 20 centavos?

Vinte centavos no transporte público, ou qualquer outra pequena fagulha, bastam para incendiar o circo.

Se a sociedade vigiar um pouco mais não só o que se passa com deputados, mas também essa história dos gastos do governo, evitará situações extremas. Entregues a si próprios, os políticos tendem a caminhar para o abismo.

É mais forte que eles.

 

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