sexta-feira, 21 de junho de 2024

José de Souza Martins - A culpa é da vítima?

Valor Econômico

Fixar em 22 semanas de gestação o limite para a realização legal do aborto não leva em conta nossas peculiaridades sociais e antropológicas

A eventual aprovação pela Câmara dos Deputados do PL 1904/2024, que define como homicídio o aborto praticado em vítima de estupro após 22 meses de gestação, mesmo sendo ela vulnerável, poderá introduzir na legislação penal brasileira o subentendido e a aberração de que em determinados tipos de violência, como o estupro, a culpa é da vítima que a sofre.

Grandes manifestações de rua, majoritariamente de mulheres, ocorreram nestes dias em cidades, como São Paulo (na avenida Paulista, superando multidões de ajuntamentos ali comuns), Natal e Porto Alegre. Os milhares de participantes manifestavam-se contra a aprovação do regime de urgência para o encaminhamento do projeto de lei.

Mesmo sendo as vítimas do abuso, como são aqui, em 75% dos casos, pessoas vulneráveis, geralmente menores de idade e até menores de 14 anos, poderão ficar sujeitas, se condenadas, a pena mais longa que a de seus estupradores.

O regime de urgência dispensa etapas na tramitação do projeto, acelerando sua votação. Ou seja, o presidente da Câmara tem pressa em viabilizar a aprovação do projeto. Ainda que na consulta feita através do site oficial da casa mais de 1 milhão de pessoas já tenham votado, 88% contra a aprovação do projeto.

Qual seria o interesse de Arthur Lira na aprovação do que os manifestantes das ruas entendem ser iniquidade e violência? Segundo levantamento do UOL, o projeto é de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), pastor pentecostal e seguidor das orientações políticas do também pastor pentecostal Silas Malafaia. Este último foi e ainda é influente nas concepções políticas de Jair Bolsonaro. Lira teria prometido colocar o tema do aborto em discussão no plenário se tivesse o apoio da bancada evangélica à sua reeleição na presidência da Câmara em 2023.

No projeto, o autor e os signatários mostram que não conhecem o Brasil que supostamente representam. Fixar em 22 semanas de gestação o limite para a realização legal do aborto não leva em conta nossas peculiaridades sociais e antropológicas.

O crime de estupro pode ocorrer em regiões remotas e pobres, sem vigilância social generalizada contra o incesto, comum no estupro de vulneráveis, e sem assistência médica apropriada à realização do aborto legal. Só 4% dos municípios brasileiros têm o serviço apropriado ao cumprimento da lei.

Um caso ocorrido há alguns anos no interior do Brasil, que repercutiu nos jornais, foi o de um pai viúvo que tomou a filha mais velha como esposa e teve vários filhos e filhas com ela. Quando a neta mais velha dessa relação chegou à adolescência, substituiu a filha por ela e a engravidou. Gerou uma parentela estranha: era avô de seu próprio filho e acabou bisavô de outro filho.

Por muitos anos, os vizinhos entenderam que aquilo era normal, um direito de pai. O caso só foi detectado quando os agentes de saúde chegaram ao lugarejo pela primeira vez e descobriram os estupros e a incestuosidade da estrutura familiar daquele grupo.

A repressiva pauta dos costumes da extrema direita e do bolsonarismo mobiliza nas manifestações destes dias a consciência profunda de quem vê nela uma conspiração contra a condição humana, um projeto de aniquilação do direito de mulheres e crianças à liberdade e ao respeito.

Significativamente, o protesto feminino e popular indicou com muita clareza que os participantes enxergam não só a iniquidade em si do projeto de lei condenado, mas as conexões criminosas que ele revela nos vários âmbitos da realidade.

Não só na saúde da mulher e da criança, mas principalmente na podridão da política, na decadência da fé que há nas motivações materialistas e pós-modernas da multiplicação de igrejas e seitas fundamentalistas e na decadência das igrejas protestantes tradicionais que também as assumiram como indicação da realização nelas dos valores da parábola dos talentos.

A facção minoritária do fundamentalismo católico converge para o alinhamento com os evangélicos no apoio à manipulação política da falsa questão dos costumes.

A Igreja Católica e vários grupos divergentes nas igrejas protestantes e evangélicas convergem num ponto significativo: o inimigo da fé é a alienação social, a corrosão e mistificação da necessidade de esperança e da certeza de libertação na superação das adversidades que minimizam a condição humana e a fé como instrumento de uma práxis libertadora. O pecado social é um pecado político.

O ser humano enganado e instrumento involuntário de sua própria enganação desta era é induzido por pastores e políticos, da seita dos pescadores em águas turvas, a crer no inferno e se tornar instrumento de satanás, no falso pressuposto de que Cristo veio para aterrorizar e não para libertar.

 

3 comentários:

  1. Esse assunto só veio a público porque o STF legislando indevidamente, decidiu que seria possível retirar uma criança do ventre às cinco meses aos 22 semanas ou seja cinco meses e meio Momento em que a criança já pode nascer e viver , para isso teria que se dar uma injeção de cloreto de potássio no coração da criancinha para matá-la posteriormente retirando a. com um parto natimorto
    Importante frisar que a legislação já garante o direito de aborto até essa data
    Em cima dessa polêmica a CNBB , entidade máxima da Igreja Católica brasileira , decidiu em carta aberta ao povo se manifestar a favor da PL contra o aborto Após 22 semanas que está tramitando no Conselho Federal e definiu o lema:
    “A mãe e a criança devem viver e terem vida em abundância “

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    1. Não é verdade. A legislação atual não estipula prazo nenhum para o aborto legal. Só esse PL insano é que quer impor limite de tempo.

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  2. O segundo comentarista tem razão, o primeiro mentiu várias vezes no início do seu comentário! A legislação não estipula qualquer prazo para a interrupção legal de gestação, nos 3 casos estabelecidos HÁ DÉCADAS: risco de a mãe morrer, anencefalia e gravidez decorrente de estupro.

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