terça-feira, 4 de junho de 2024

Merval Pereira - Ser humano

O Globo

Nunca, como nos anos recentes, os ministros do Supremo mostraram-se tão humanos na capacidade de cometer erros em consequência de situações pessoais que influenciam suas decisões

A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia assume a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com duas missões, uma interferindo na outra. Seu mandato, que se encerra dois meses antes das eleições presidenciais de 2026, terá como objeto principal aprovar normas que protejam os candidatos do uso da inteligência artificial para distorcer informações ou mentir pela boca de adversários com o uso de deepfake.

As medidas tomadas agora terão repercussão não apenas nas próximas eleições municipais. Ao mesmo tempo, porém, ela terá de fazer isso com a moderação que lhe é característica, impedindo que a legislação protetiva termine se transformando em instrumento de polarização política.

Nunca, como nos anos recentes, os ministros do Supremo mostraram-se tão humanos na capacidade de cometer erros em consequência de situações pessoais que influenciam suas decisões, levando quem salvou a democracia a colocá-la em risco. Como errar é humano, e a vaidade nos ataca a todos, à medida que os juízes se afastam da letra da lei para ampliar ou restringir seu entendimento, o resultado é o aumento de seu próprio poder, que embriaga.

Houve momento na nossa triste história recente em que, se não houvesse reação firme do Supremo, nossa democracia poderia ter sido destruída. Mas a concentração de poder nas mãos de um mesmo juiz, escolhido por desejo monocrático de um presidente eventual do Supremo, transformou em todo-poderoso o relator de todos os processos ligados, direta ou indiretamente, à divulgação de fake news.

Foi decisão autoritária que pareceu à época condizente com a gravidade da situação. À medida que a radicalização política prevaleceu, instigada pelo próprio presidente eleito na praça pública, mais poder ganhou o ministro-relator, admirado externa, mas sobretudo internamente, pela coragem de arrostar os perigos inerentes à sua luta contra o autoritarismo. Como os ataques passaram a ser pessoais, a perseguir ministros e aparentados, a questão política ganhou relevo, tendência que já se manifestava anteriormente na disputa contra a Operação Lava-Jato. Um ministro que fazia a defesa veemente da operação, a ponto de dizer que se instalara no país uma “cleptocracia”, passou a ver nela um perigo à democracia quando investigadores começaram a bater em portas conhecidas.

Um outro, ao tomar conhecimento de comentários desairosos sobre seus conhecimentos jurídicos feitos pelos procuradores de Curitiba, mudou de voto para condenar o ex-juiz Sergio Moro. Outro, identificado como “amigo do amigo de meu pai” pelo empreiteiro Marcelo Odebrecht, saiu anulando todas as provas contra o filho do amigo do amigo, desmentindo até os dados e confissões do próprio.

No caminho, foram cometendo os mesmos erros de que acusavam a Lava-Jato: prisões alongadas; conflitos de interesses; acusações sem provas, mas com convicção; uso de instâncias judiciais para vingança. As ameaças pessoais a esposas e filhos de ministros são revoltantes e explicam, até certo ponto, decisões pessoais proibidas por leis, além do próprio bom senso, como a de quem ameaçou a própria família, sem ter o cuidado de se declarar impedido (só o fazendo depois da prisão decretada).

A ministra Cármen Lúcia, única mulher no Supremo no momento, terá a oportunidade de, com a serenidade firme que a define, colocar o trem de volta aos trilhos. Teremos nos próximos anos dois juízes equilibrados e dedicados a fazer avançar a democracia — Luís Roberto Barroso presidindo o Supremo e Cármen Lúcia no TSE — e podemos ter esperanças de que o cenário moderado que começa a se desenhar no ambiente jurídico prevaleça.


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