domingo, 30 de junho de 2024

Míriam Leitão - O Plano Real e a democracia

O Globo

Um fio liga as duas maiores conquistas brasileiras: o real é obra da democracia e ajudou a consolidar a democracia

Persio Arida sempre diz que o Plano Real foi obra da democracia. Há um fio que liga as duas conquistas. A estabilização também consolidou a democracia. Vivíamos o caos monetário e se aquela devastação continuasse o país perderia a confiança nos governos civis. O próprio plano, ao ser explicado antecipadamente por Fernando Henrique e, depois, por Rubens Ricupero, virou uma obra coletiva. Não haveria sucesso do plano sem o povo. Conceitos complexos foram entendidos pela população. FHC chamou isso de pedagogia democrática.

A alta dos índices de preços ficou maior na democracia. Saiu do patamar das centenas para o de milhares por cento. Contudo, a gênese daquele horror econômico ocorreu na ditadura que escolheu, através da correção monetária, conviver com inimigo tão perigoso. Havia ainda a humilhante dívida externa também herdada dos militares. A destruição de valores que a hiperinflação produz, num país desigual, demoliria a confiança na democracia nascente. Seria fácil prosperar o discurso autoritário.

O povo vivia aflições e espantos. Uma lembrança nítida que Mary Cheng, hoje servidora do Banco Central, tem da infância era do supermercado à noite. A mãe a levava no início de cada mês, depois do trabalho e lá ficava até a loja fechar. Sua tarefa era correr atrás do produto que não tivesse sido remarcado. Tinha que ser mais rápida que o etiquetador. Buscar em cada lata a ausência da última etiqueta. “Não era apenas eu. Eram várias crianças correndo no supermercado. Parecia uma gincana. Era uma coisa muito fora do padrão normal, crianças saindo do supermercado à meia noite”. Lembranças assim estão espalhadas pelo Brasil.

O acaso foi caprichoso nessa história. O primeiro presidente eleito pelo voto direto caiu. O vice que assumiu anunciou, no sétimo mês do seu curto mandato, seu quarto ministro da Fazenda. O que sinceramente Fernando Henrique podia fazer em 19 meses? Ele liderou a grande obra da estabilização brasileira. Itamar Franco sempre terá o mérito de ter tornado o plano possível e o ter aprovado, mesmo quando discordava.

Era sábado quando o ministro Fernando Henrique, recém-nomeado, chegou dirigindo na casa de André Lara Resende, em São Paulo, e perguntou: “o que vamos fazer, André?”. Foi a primeira conversa. A segunda foi no apartamento de FHC em Brasília. Ele convocou uma reunião. Edmar Bacha chegou mais cedo e começou a rabiscar num papelzinho azul os primeiros traços do que seria o plano.

Eles sabiam o caminho porque antes houve muito debate na PUC do Rio. Economistas jovens, com PHD no exterior, se juntaram na PUC no final dos anos 1970. Criaram o hábito de reuniões frequentes com muito debate sobre os temas que infelicitavam o país: a dívida externa, a inflação. Nesse debate, as mentes brilhantes de Persio Arida e André Lara Resende produziram o documento principal, o Plano Larida, que propunha introduzir uma moeda indexada na economia. Aos poucos, ela substituiria a moeda inflacionada.

Levar o plano à realidade foi uma história de bastidores emocionantes. Fernando Henrique pediu demissão três vezes na reunião para a aprovação da URV, domingo 27 de fevereiro de1994. A luta da Fazenda era impedir que ideias exóticas fossem incluídas na arquitetura frágil da moeda virtual que seria o caminho para o real. FHC venceu porque a cada impasse avisava que estava indo embora com o seu time. Ricupero fez o mesmo nas vésperas do plano, quando um enviado do Planalto desembarcou na Fazenda com perguntas sem sentido. Levantou-se no meio da reunião e foi ao presidente disposto a entregar a carta de demissão. Esse desapego ao cargo foi fundamental.

Como convencer, na era analógica, um país cansado de experimentos econômicos, a converter preços e contratos numa moeda fisicamente inexistente? A população aderiu à URV em tempo recorde, ela era a véspera do real. Ricupero caiu após uma fala imprudente, quando a nova moeda tinha apenas três meses. Em entrevista, agora, ele me disse que deitou naquele dia se sentindo “uma folha de papel que se dissolvia”. Queria não acordar.

No meu livro chamei essa história de “saga brasileira”. Assim a vejo até hoje. Épica. Acabo de revisitá-la num documentário. Foi uma travessia que durou anos, com momentos de perigo e tensão. O fator decisivo foi a livre adesão dos brasileiros. É a maior história que eu cobri na minha vida de jornalista. Um plano na democracia e pela democracia.

 

Um comentário: