O Globo
Um fio liga as duas maiores conquistas
brasileiras: o real é obra da democracia e ajudou a consolidar a democracia
Persio Arida sempre diz que o Plano Real foi
obra da democracia. Há um fio que liga as duas conquistas. A estabilização
também consolidou a democracia. Vivíamos o caos monetário e se aquela
devastação continuasse o país perderia a confiança nos governos civis. O
próprio plano, ao ser explicado antecipadamente por Fernando Henrique e,
depois, por Rubens Ricupero, virou uma obra coletiva. Não haveria sucesso do
plano sem o povo. Conceitos complexos foram entendidos pela população. FHC
chamou isso de pedagogia democrática.
A alta dos índices de preços ficou maior na democracia. Saiu do patamar das centenas para o de milhares por cento. Contudo, a gênese daquele horror econômico ocorreu na ditadura que escolheu, através da correção monetária, conviver com inimigo tão perigoso. Havia ainda a humilhante dívida externa também herdada dos militares. A destruição de valores que a hiperinflação produz, num país desigual, demoliria a confiança na democracia nascente. Seria fácil prosperar o discurso autoritário.
O povo vivia aflições e espantos. Uma
lembrança nítida que Mary Cheng, hoje servidora do Banco Central, tem da
infância era do supermercado à noite. A mãe a levava no início de cada mês,
depois do trabalho e lá ficava até a loja fechar. Sua tarefa era correr atrás
do produto que não tivesse sido remarcado. Tinha que ser mais rápida que o
etiquetador. Buscar em cada lata a ausência da última etiqueta. “Não era apenas
eu. Eram várias crianças correndo no supermercado. Parecia uma gincana. Era uma
coisa muito fora do padrão normal, crianças saindo do supermercado à meia
noite”. Lembranças assim estão espalhadas pelo Brasil.
O acaso foi caprichoso nessa história. O
primeiro presidente eleito pelo voto direto caiu. O vice que assumiu anunciou,
no sétimo mês do seu curto mandato, seu quarto ministro da Fazenda. O que
sinceramente Fernando Henrique podia fazer em 19 meses? Ele liderou a grande
obra da estabilização brasileira. Itamar Franco sempre terá o mérito de ter
tornado o plano possível e o ter aprovado, mesmo quando discordava.
Era sábado quando o ministro Fernando
Henrique, recém-nomeado, chegou dirigindo na casa de André Lara Resende, em São
Paulo, e perguntou: “o que vamos fazer, André?”. Foi a primeira conversa. A
segunda foi no apartamento de FHC em Brasília. Ele convocou uma reunião. Edmar
Bacha chegou mais cedo e começou a rabiscar num papelzinho azul os primeiros
traços do que seria o plano.
Eles sabiam o caminho porque antes houve
muito debate na PUC do Rio. Economistas jovens, com PHD no exterior, se
juntaram na PUC no final dos anos 1970. Criaram o hábito de reuniões frequentes
com muito debate sobre os temas que infelicitavam o país: a dívida externa, a
inflação. Nesse debate, as mentes brilhantes de Persio Arida e André Lara
Resende produziram o documento principal, o Plano Larida, que propunha
introduzir uma moeda indexada na economia. Aos poucos, ela substituiria a moeda
inflacionada.
Levar o plano à realidade foi uma história de
bastidores emocionantes. Fernando Henrique pediu demissão três vezes na reunião
para a aprovação da URV, domingo 27 de fevereiro de1994. A luta da Fazenda era
impedir que ideias exóticas fossem incluídas na arquitetura frágil da moeda
virtual que seria o caminho para o real. FHC venceu porque a cada impasse
avisava que estava indo embora com o seu time. Ricupero fez o mesmo nas
vésperas do plano, quando um enviado do Planalto desembarcou na Fazenda com
perguntas sem sentido. Levantou-se no meio da reunião e foi ao presidente
disposto a entregar a carta de demissão. Esse desapego ao cargo foi
fundamental.
Como convencer, na era analógica, um país
cansado de experimentos econômicos, a converter preços e contratos numa moeda
fisicamente inexistente? A população aderiu à URV em tempo recorde, ela era a
véspera do real. Ricupero caiu após uma fala imprudente, quando a nova moeda
tinha apenas três meses. Em entrevista, agora, ele me disse que deitou naquele
dia se sentindo “uma folha de papel que se dissolvia”. Queria não acordar.
No meu livro chamei essa história de “saga
brasileira”. Assim a vejo até hoje. Épica. Acabo de revisitá-la num
documentário. Foi uma travessia que durou anos, com momentos de perigo e
tensão. O fator decisivo foi a livre adesão dos brasileiros. É a maior história
que eu cobri na minha vida de jornalista. Um plano na democracia e pela
democracia.
Ótimo artigo.
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