Cássia Almeida / O Globo
Referência no pensamento desenvolvimentista, a portuguesa de nascimento e brasileira de coração, deixa dois filhos, dois netos e um bisneto
A economista Maria da Conceição Tavares
morreu neste sábado em Nova Friburgo aos 94 anos. Referência do pensamento
desenvolvimentista no país, sem papas na língua, a portuguesa de nascimento e
brasileira de coração, formou uma geração de economistas no país que têm
decidido o destino econômico do Brasil nas últimas décadas. Ela deixa dois
filhos, Laura e Bruno, dois netos, Ivan e Leon e o bisneto Théo. A família não
divulgou a causa da morte.
A sua festa de 80 anos, em 2010, na Casa do Minho, exatamente em frente ao prédio onde morava no Cosme Velho, encheu o lugar de ex-governadores, ex-ministros da Fazenda, da Saúde e por aí vai. Dois candidatos à Presidência, Dilma Rousseff e José Serra, dividiram a mesa com a economista. Foram seus alunos Fernando Henrique Cardoso, Guido Mantega, Pedro Malan, Luciano Coutinho, João Manuel Cardoso de Melo, Carlos Lessa, Luís Gonzaga Beluzzo, José Luis Fiori e Aloizio Mercadante
O respeito pelo conhecimento da mais
provocativa economista brasileira se soma ao carisma da professora da Unicamp e
da UFRJ, que conseguia hipnotizar uma plateia de jovens, entrantes na faculdade
de Economia, por mais de uma hora, como na aula magna que lotou o auditório
Pedro Calmon, no campus da UFRJ na Urca. Era 2009.
Nascida em 24 de abril de 1930, em plena
Grande Depressão, temia aquele início de ano, quando o Brasil e o mundo viviam
a recessão: “Nasci numa depressão e vou morrer noutra”, falou, para ser
desmentida pela realidade. Em abril de 2018, estava de volta àquele mesmo palco
para receber homenagem pelos seus 88 anos.
Em entrevista concedida ao GLOBO, um pouco
antes, disse que estava pessimista com o Brasil e esperava que os jovens
pudessem ajudar o país a sair da crise política e econômica.
—É difícil não ficar pessimista hoje no
Brasil. Tem alguém otimista que você conheça? Nem eu. Essa geração de jovens
que faça paralisações, mova-se. Tirando os jovens, estamos mal. Eu não gostaria
nada de estar velha e pessimista, nada. É péssimo, queria uma velhice feliz, do
jeito que está não estou tendo. O que me dá um certo alívio é que tem uma
geração de jovens para entrar. O que está aí é um lixo.
Maria da Conceição Tavares chegou ao Brasil
em 1954, três anos depois, tornou-se cidadã brasileira. Intensa, neutralidade
nunca fez parte do seu vocabulário. Combateu ferozmente a política econômica do
regime militar e os planos liberais dos governos de Fernando Henrique Cardoso.
Chorou em
frente às câmeras de TV na defesa do Plano Cruzado, nos anos
1980, em um dos momentos mais marcantes daquela época de euforia que o
congelamento dos preços trouxe ao povo brasileiro, a crença de que finalmente a
inflação tinha sido vencida. A preservação dos ganhos dos trabalhadores foi a
razão para essa defesa emocionada na frente das câmeras de televisão, contou
ela 30 anos depois:
— Pela primeira vez se fazia um plano
anti-inflacionário que não prejudicava o trabalhador. Isso é comovedor, todos
os outros, como este agora também (referindo-se ao ajuste fiscal promovido em
2015), provocaram recessão, desemprego e queda de salários. Acompanhei o plano
todo, até que capotou de maneira estrondosa.
Na homenagem à professora no seu aniversário
de 80 anos, José Luís Fiori, da UFRJ, escreveu: "Poucos professores no
mundo, ao chegar aos 80 anos, poderão assistir a uma eleição da importância da
que ocorrerá no Brasil, em 2010, e saber que os dois principais candidatos
foram seus alunos, e se consideram, até hoje, seus discípulos”.
Em nota, o presidente do BNDES, Aloízio
Mercadante, citou a contribuição da professora "para a construção do
BNDES, instituição na qual ela entrou concursada em 1958"
"Destaco também que Conceição ajudou na
concepção e na implantação do Plano de Metas. Nas palavras de Mercadante, o
Brasil hoje perde "uma referência intelectual de integridade e de
compromisso com o Brasil e com o povo brasileiro."
Prisão e exílio no Chile
Ela não passou incólume ao período da
ditadura militar. Exilou-se no Chile, trabalhando na Comissão Econômica para
América Latina e Caribe (Cepal), sendo a principal defensora e estudiosa do
modelo nacional desenvolvimentista, com substituição de importações.
É obrigatório seu texto de 1972, “Auge e
Declínio do Processo de Substituição de Importações no Brasil - Da Substituição
de Importações ao Capitalismo Financeiro”, escrito quando estava no Chile. Foi
criadora, junto com Mário Henrique Simonsen, Delfim Netto e João Paulo dos Reis
Velloso da pós-graduação em economia no Brasil e do Instituto de Economia da
Unicamp.
No período militar, chegou a ser presa sem
saber muito bem o motivo. Era 1974, e ela passou 48 horas nos porões do
DOI-Codi, no Rio. Os enviados do então presidente Ernesto Geisel demoraram a
encontrá-la. Foi vítima de uma briga de poder no regime entre Geisel e os
aparelhos de repressão.
O amigo Mario Henrique Simonsen foi quem a
tirou da cadeia: “Foi desagradável, celas muito nojentas, geladas, pintadas de
branco, um frio desgraçado. Não fui torturada nem nada, mas fui ameaçada. Pelo
menos não sumiram comigo.” contava.
As discussões com o amigo Simonsen eram
antológicas. Ambos lecionavam na Fundação Getulio Vargas. Só que Conceição
assistia às aulas de Simonsen, e os alunos se deliciavam com as discussões:
— Mário era ortodoxo. Se tivesse inflação,
valia tudo até desemprego. No fundo, defendia a política do regime (Simonsen
foi ministro da Fazenda de 1974 a 1979). Então, no debate, não estávamos de
acordo em nada (risos).
Foi deputada federal pelo Rio de Janeiro
entre 1995 e 1998 pelo PT. Seu lema de campanha era “esta é boa de briga”. Foi
a segunda mais votado pelo PT no Rio:
— Vou infernizar o ministro da Fazenda, quer
seja o meu, quer seja o deles — dissera na época.
Em 2004, Aloízio Mercadante disse sobre a
professora:
— Ela é uma referência obrigatória. Pode-se
divergir, mas não há como não respeitá-la. Ela é a matriarca, e Celso Furtado,
o patriarca, de uma geração. São pessoas que se dedicaram ao Brasil e se
mantiveram íntegras.
Livros foram mais de uma dezena, ganhou o
Prêmio jabuti de Economia em 1998.
Casou-se duas vezes. O primeiro casamento foi
com o engenheiro português Pedro José Serra Soares com quem teve a filha Laura
e o segundo com o professor de Ciências Biológicas da UFRJ, Antônio Carlos de
Magalhães Macedo, pai de seu filho Bruno. Teve dois netos, Leon e Ivan.
Ela era vascaína e o futebol, nos últimos
tempos, tomou mais tempo da economista do que a própria economia, como ela
falou ao “Valor”, em 2012: “Se for para falar de tudo, prefiro futebol. Passei
a gostar mais de futebol do que de economia. Felizmente, a imprensa do Rio
parou de falar da crise no Flamengo. Antes da Olimpíada só dava saída do
Ronaldinho Gaúcho, queda do Joel Santana, entrada do Dorival Júnior…”
Foi contra o Plano Real, não acreditava na
época que desse certo e chegou a classificá-lo como algo “muito conservador e
recessivo, um horror”. A crítica era o arrocho salarial embutido, diante do
congelamento dos salários por um ano. Enganou-se, o plano deu certo e
estabilizou os preços.
Conceição comprou brigas. Contra o Real e o
achatamento salarial e até contra o primeiro governo do PT. Chegou a chamar de
débeis mentais assessores do então ministro da Fazenda Antonio Palocci. Eles
defendiam a focalização da política social. Conceição defendia a
universalização como está na Constituição: saúde, assistência social e educação
para todos.
“Não sou da área social e estou histérica.
Temos políticas universais há mais de 30 anos. Somos o único país da América
Latina que tem políticas universais. A focalização foi experimentada e
empurrada pelo Banco Mundial na goela de todos os países e deu uma cagada. Não
funciona nada”, disse a economista em 2003 à Folha de S.Paulo.
A amiga pessoal e vizinha, Hildete Pereira de
Mello organizou livro sobre ela com os ensaios: “Conceição cientista e mulher
política se confundem; ela rompeu todas as barreiras que ainda hoje relegam às
mulheres tanto no cenário político como no científico do mundo atual, e que a
jovem Conceição dos anos cinquenta enfrentou com tanta garra e destemor”,
escreveu a amiga de mais de 40 anos.
Em tempos de pandemia, com a professora
morando em Nova Friburgo, trechos de vídeos de suas aulas na Unicamp nos anos
1980 e da entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1995, ganharam as
redes em 15 de outubro de 2021, e viralizaram: “Se você não se preocupa com
justiça social, com quem paga a conta, você não é um economista sério. Você é
um tecnocrata” foi a parte destacada da entrevista.
Nos 88 anos da economista, o cineasta José
Mariani lançou filme sobre ela. A película começa com a análise de Conceição
sobre o livre pensar, que dá título ao documentário:
—O livre pensar, de todos os direitos, tem
sido o mais recorrentemente violado, sempre provoca, desde a antiguidade,
horror nas sociedades estabelecidas. Para ver como o idealismo, a razão é tão
revolucionária.
Nele, ela fala de seu sonho que não se
concretizou:
— Continuo querendo uma democracia multirracial nos trópicos, que era a tese de Darcy Ribeiro. Isso era realmente o que eu queria ver, mas por enquanto não tem.
Uma mulher de grande coragem, inesquecível!
ResponderExcluirUma grande pensadora contemporânea,esta sim,de fato.
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