Folha de S. Paulo
Sem meias palavras, séria e honesta Maria da
Conceição afirmava 'a crise brasileira é política'
Evento: seminário sobre a redemocratização brasileira em Washington, organizado no final dos anos 1980 pela Universidade de Maryland. Numa mesa, Darcy Ribeiro prometia entre jocosa e seriamente que, se o elegessem imperador, resolveria em três meses o problema econômico do Brasil. Maria da Conceição Tavares interrompe: "Não seja leviano, Darcy!" Ele então pergunta que êxito os economistas haviam obtido nos últimos 20 anos. Sempre autoafirmada como séria e honesta, ela responde: "Nenhum!" E contemporiza baixinho que Darcy levantava com verve o problema da decisão política.
Esse pequeno episódio, ambientado num debate
entre pares cordiais de uma esquerda pensante, precedia o Plano
Real, contra o qual, aliás, Maria da Conceição viria a assestar
equivocadamente as suas baterias, já tendo antes apoiado o malfadado Plano
Cruzado. Bom, economia não
é nenhuma ciência exata. Mas do episódio ressoa até hoje a lição em uma frase,
"a crise brasileira é política", agora repetida nos vídeos em
homenagem póstuma a Maria da Conceição Tavares, extraordinária economista
(luso) brasileira, mestra de gerações, uma das maiores intelectuais que já
pontuaram a nossa vida pública. Sobre a modernização tecnológica excludente dos
pobres, tinha sentença definitiva: "Cada onda de modernidade é uma paulada
no lombo do povo!"
Maria perfilou a falange de Celso Furtado e
de gente que não
dissociava economia de desenvolvimento social, pressuposto
vigente no pensamento progressista antes da financeirização, que trouxe consigo
o neoliberalismo paulista. Esse pensamento arrefeceu, mas se manteve nos anos
1990, ainda que sob a hegemonia dos setores arcaicos das forças armadas e da
agropecuária, assim como sob o olhar de banda da entidade que se agigantava com
a alcunha de "mercado". Mantinha-se algo que sustentou a esperançosa
social-democracia dos primeiros 15 anos deste século.
Mas há esperanças sem potência, por falta de
âncora na realidade. O capital passa a orientar-se pelo imaterial, deixando de
associar produção a desenvolvimento social, concentrando riquezas em fluxos
financeiros e abandonando a ideia de humanidade como ampliação do campo de
manifestação da verdade. Desamparadas, as massas abriram-se às drogas
nostálgicas, químicas e religiosas, insumos da direita radical em toda parte. É
a dopamina verborrágica contra o sentido da fala. Incapaz de se contrapor, a
esquerda institucional ficou surda à voz interna da política, que se expressa
por militância.
Maria da Conceição temia a degeneração
política. Preferiu não se reeleger para o Congresso. Por quê? "Porque esse
parlamento é uma merda!" Ela era sem meias palavras. Na rede, a imagem
escatológica de um vereador em sessão da Câmara carioca concretiza a metáfora.
E nosso atual parlamento é uma merda ainda mais fedida.
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