domingo, 16 de junho de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo - Querida Ceiça

CartaCapital

Sempre a rever as próprias ideias, nunca a negar o que escreveu

Ainda mergulhado em minhas tristezas e amarguras com a despedida de minha grande companheira de tantas batalhas, vou oferecer ao leitor de ­CartaCapital um perfil mais afetivo do que acadêmico de minha querida amiga Maria da Conceição Tavares.

Na posteridade da animada festa que celebrou seus 80 anos, na alegria que sempre mereceu dos amigos, Ceiça vestiu uma camisa do Vasco e saiu por aí. Foi ao jogo contra a turma da camisa listrada rubro-negra. Acompanhada do filho Bruno e do neto torceu e vibrou na arquibancada. O time do Almirante não fez feio. Empatou jogando de igual para igual com o adversário.

O leitor avisado imagina que, se nos gramados Conceição se conforma com empates, no campo das porfias ­intelectuais e políticas ela não tem piedade dos adversários. Posso garantir: é lenda. Os colegas e alunos que conviveram com a professora sabem que sua inteligência inquieta e irreverente não ataca o interlocutor, mesmo em casos terminais em que o cidadão apresenta graves sintomas de neo­liberalismo ou de esquerdismo infantil.

Conceição buscava a particularidade brasileira sem rejeitar os conceitos e os valores com aspirações à universalidade

Posta a controvérsia, Conceição maneja os argumentos mais complexos com uma velocidade bem acima da média permitida aos comuns. Isso realimenta a lenda. Quando a coisa esquenta, a capacidade analítica e de abstração da professora descarna o adversário. Seja ele Pedro, João ou Francisco, a parte contrária transmuta-se em uma forma, um suporte das ideias em disputa. Nada pessoal. Não raro ela toma a arma do contendor, reordena os termos do argumento adversário e passa a acuar o cidadão em seu próprio campo. Mas, se o adversário não tem molejo, corre sério risco de terminar o torneio com a autoestima nos calcanhares ou, como muitas vezes observei, com a soberba intelectual em frangalhos.

Quem está habituado às precariedades da razão sabe que essa dialética peculiar é um método de fazer avançar o conhecimento e a compreensão. Conheço poucos intelectuais tão desapegados de sua (autêntica ou suposta) originalidade. Conceição concede e recebe contribuições com enorme generosidade. Rejeita as duas mesquinharias em voga na cultura do narcisismo: patentear as próprias ideias e esconder que a ideia é do outro. Por isso, as “desavenças” teóricas e outras nem tanto que Conceição sustentou com seus amigos e colegas terminaram em teses de mestrado e doutorado, artigos a quatro mãos e livros publicados.

Conceição buscou a particularidade brasileira sem rejeitar os conceitos e os valores com aspirações à universalidade, nascidos da generalização das relações sociais, econômicas políticas e culturais surgidas da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. Essa especificidade histórica não foi construída por meio da oposição abstrata e rebarbativa entre modelos também abstratos, mas, sim, mediante a investigação histórica, única forma de se dar o sopro de vida aos conceitos. A ­diversidade de experiências, dentro do marco comum das aspirações à “modernidade”, foi o emblema dos Trinta Anos Gloriosos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.

Era possível, então, aos intelectuais das nações emergentes – e Conceição estava entre eles – desenhar o espaço no qual seriam construídas as utopias da igualdade e das liberdades, mediante a “invenção” de seus próprios caminhos, numa emulação enriquecedora com os países centrais. Assim, a convergência para os valores, formas de convivência e instituições políticas nascidas do Iluminismo, das revoluções francesa e norte-americana e da Revolução Industrial seria acompanhada da diferenciação de estilos, da valorização das tradições culturais e do respeito aos processos “locais” de integração social.

No Brasil, as forças ditas progressistas foram impotentes para promover as reformas necessárias e levar adiante um projeto de desenvolvimento nacional que deveria ultrapassar os marcos estritos do mero crescimento econômico. O avanço da industrialização e da modernização social e política foi travado pelas alianças políticas, regionais e de classe que incorporaram os interesses mais retrógrados e reacionários ao bloco desenvolvimentista. Essa circunstância explica a derrota, no imediato pós-Guerra, das tendências políticas que almejavam maior autonomia nacional. Tal pretensão não significava, como pretende o cosmopolitismo conservador, a busca de uma economia autárquica.

Tinha mais tolerância com a desinformação dos inocentes do que com a parolagem dos que se dedicam a enunciar banalidades solenes

Conceição sempre insistiu na necessidade de se manter sob o comando nacional – estatal ou privado – os setores decisivos do ponto de vista financeiro e tecnológico, estratégicos no que respeita à governança da economia e, sobretudo, nucleares para coordenar as decisões de investimento. A repactuação continuada do compromisso com o cosmopolitismo conservador foi, na verdade, responsável pela trajetória que levou o capitalismo brasileiro aos impasses que o imobilizam atualmente: a deformação sistemática da vontade popular, imposta por um sistema político oligárquico e intrinsecamente antirrepublicano, a espantosa persistência da estrutura agrária que está na origem da reprodução e ampliação das desigualdades sociais, transportadas do campo para a cidade.

Egos inflados, esquerdistas festivos ou cabeças quadradas devem guardar distância de Conceição. Nessa turma minha amiga coleciona uma legião de ressentidos. É difícil convencer os atingidos, mas ela não briga com os indivíduos. Muito menos pretende humilhar os antagonistas. As aparências podem indicar o contrário, mas Conceição tem horror a veredictos pessoais peremptórios e abomina moralistas e fuxiqueiros. Revela mais tolerância com a desinformação e as tolices dos inocentes do que com a parolagem dos que se dedicam a enunciar banalidades solenes, aliás, uma marca de nosso tempo. Quem quiser arrumar encrenca da boa, encha a boca para falar obviedades pretensiosas, como estas que encalacraram o País. Coisas do tipo: “É preciso cortar gastos”.

Está todo o tempo criticando, brigando com as ideias, as suas e as dos outros. Se há algum consolo para aqueles que ficam ressabiados depois de uma refrega, saibam que as suas próprias ideias são as primeiras a sofrer no corredor polonês de seu vezo crítico. Conceição pode atravessar horas, dias, meses inteiros revendo e reformulando o que pensou e falou. Mas não esquece o que escreveu.

Os interlocutores de Conceição têm dificuldade, muitas vezes justificada, de compreender que ela não quer, em qualquer sentido, derrotá-los no debate. Este seria um objetivo menor, desprezível e mesquinho. Para ela, tanto melhor se o oponente demonstrar capacidade de se defender e contra-atacar. A discussão esquenta, ela vai bater com mais força. Mas esta é apenas uma forma peculiar de incorporar os argumentos do outro. O contendor, tomado de perplexidade, recebe de volta as próprias razões como se fossem as dela, em geral reapresentadas de maneira inventiva e inovadora.

Temor reverencial, zero. O velho Raúl Prebisch, Celso Furtado, Aníbal Pinto, mestres e amigos – figuras que admira e respeita – ouviram poucas e boas. O velho Prebisch ficava um pouco incomodado, Celso condescendente, mas Aníbal, o mais brasileiro dos chilenos, levava na esportiva: “Esta es Maria Conce”. Num seminário, em 1981, no México, de forma suave e didática, em inglês impecável – descontado o sotaque à Adolpho Celli, o vilão de James Bond em Chantagem Atômica –, Conceição destruiu o modelo de export-led growth que os economistas de Cambridge, às vésperas da crise da dívida externa de 1982, tentavam vender ao governo mexicano. Os negócios acadêmicos, diga-se, iam de vento em popa. O discípulo da professora Joan Robinson, John Eatwell, hoje Lorde Eatwell, acuado e incapaz de responder às objeções, partiu para a agressão verbal.

No dia seguinte, no café da manhã, foi obrigado por Nicholas Kaldor a pedir desculpas. Conceição, Luciano Coutinho, o argentino Arthuro O’Connel, ­Fernando Fajnzylber e este que vos fala ouviram Eatwell dizer, em inglês, sob os olhares vigilantes de Lorde Kaldor: “Fui tolo, arrogante e inconveniente”. Finalmente, Eatwell havia conseguido dizer alguma coisa útil naquele seminário. Conceição comia um sanduíche: “Deixa pra lá, vou cuidar de meu sanduíche”, respondeu em português, entre uma garfada e outra. 

Publicado na edição n° 1315 de CartaCapital, em 19 de junho de 2024.

2 comentários:

  1. Daniel abre a boca e derruba quem elogia!

    Admirável por defender o Cruzado ou por atacar o Real?

    MAM

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